sexta-feira, 1 de setembro de 2017

“Direitos humanos não vão de férias”



Neste mês de Agosto, o grupo Jovens pela Paz lan­çou uma iniciativa de pro­moção dos direitos humanos sob a bandeira “Direitos humanos não vão de férias”seguindo o slogan das Nações Unidas em 2016 “os valores humanos estão debaixo de ataque” e “devemos defender a nossa humanidade comum”. Com a leitura e distribuição da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH) juntos dos jovens nas zonas balneares, no Sucupira e nou­tros sítios onde com mais fre­quência se encontram, o gru­po pretende contribuir para “uma cultura de paz e sã con­vivência entre as pessoas”. O que o grupo visa com essa acção cívica de grande alcan­ce está em plena concordância com a Constituição da Repú­blica que logo no n.1 do artigo 1º “reconhece a inviolabilida­de e a inalienabilidade dos di­reitos humanos como funda­mento de toda a comunidade humana, da paz e da justiça”. Pena que ainda subsista no país posicionamentos públi­cos que – por não assumirem que o Estado em Cabo Verde nem sempre respeitou os di­reitos humanos e que isso teve consequências trágicas para muita gente – não favorecem o florescimento de uma cultu­ra de defesa intransigente dos direitos fundamentais junto das instituições e da própria sociedade.
A constituição cabo-ver­diana em vigor desde 25 de Setembro de 1992 tem um ca­tálogo de direitos, liberdades e garantias que directamente se inspiraram na declaração universal dos direitos huma­nos produzida na sequência da Revolução Francesa de 1789 e também do Bill of Ri­ghts de 1791 que com o texto da declaração da independên­cia completam a constituição americana de 1787. O mesmo acontece com a generalidade das constituições liberais e de­mocráticas que depois da se­gunda guerra mundial e na se­quência da chamada terceira vaga de democracia que cul­minou com a queda do Muro de Berlim foram adoptadas por países que deixaram para trás os anos de má memória de regimes autoritários e tota­litários. A universalidade des­ses direitos e a atracção uni­versal que tendem a exercer sobre todos os oprimidos, os privados de liberdade e as ví­timas da injustiça fazem com que tenham muitos inimigos.
Hoje é uma realidade ines­capável que os direitos huma­nos estão sob ataque, e não só nos países tradicionalmente autoritários, mas também nas velhas e novas democracias. Há quem como Viktor Orban, da Hungria, que assume fron­talmente que quer construir uma democracia iliberal, ou Erdogan, na Turquia, que faz a democracia recuar dé­cadas com as suas reformas supressoras do pluralismo, da liberdade de imprensa e da independência dos tribu­nais. Há quem também usa a ameaça terrorista e a presen­ça de imigrantes e refugiados para criar legislação e instituir procedimentos de polícia que na prática atentam contra os direitos humanos. O perdão do crime de desrespeito pelo tribunais dado por Trump ao xerife do Arizona Joe Arpaio é um exemplo de como medi­das de minimização do poder judicial e legislação restritiva de direitos em nome da segu­rança podem conjugar-se para fazer da democracia o que ela não deve ser: o reino da dis­cricionariedade e da arbitra­riedade, onde nem todos são iguais perante a lei e o acesso à justiça é condicionado.
Resistir a essa ofensiva contra os direitos humanos deve ser a tarefa de todos. A iniciativa do grupo Jovens para a Paz e outras acções si­milares de sensibilização de jovens e da sociedade devem ser apoiadas. Não deve haver recuo em relação aos ganhos civilizacionais conseguidos com a instituição do Estado de Direito Democrático e com a consagração dos direitos fundamentais que nem po­dem ser matéria de revisão constitucional. Nesta luta, a preservação da memória do que aconteceu com as pes­soas, com a sociedade e com o país quando os direitos huma­nos não eram respeitados em Cabo Verde devia ser funda­mental. Mas não é.
Estranhamente, o Estado e todos os órgãos de soberania omitem-se e fazem por esque­cer que, por exemplo, em Ju­nho deste ano completaram­-se 40 anos do assalto violento das autoridades do regime de partido único em S.Vicente a dezenas de pessoas simples e pacíficas que não cometeram qualquer crime. Também não dão sinal que a um dia de mais um aniversário vão recordar com o devido destaque os acontecimento de 31 de Agos­to de 1981. Muito menos ain­da - depois de mais 26 anos de regime democrático - há qual­quer tipo de reconhecimento, de indemnização ou de sim­ples pedido de desculpa dirigi­do aos que foram directa e vio­lentamente vítimas do Estado e dos seus agentes durante os quinze anos de partido único. O contraste com o tratamento dado aos oficialmente consi­derados combatentes deixa qualquer pessoa perplexa. No BO de 11 de Julho de 2017 fo­ram “reconhecidos” mais 74 combatentes que terão direito a privilégios múltiplos entre os quais a possibilidade de uma pensão mensal do Estado até 75 mil escudos.
De facto, os direitos huma­nos “não devem ir de férias nem tão pouco perder a me­mória” do mundo e das cir­cunstâncias que antes os ne­garam. Haverá sempre pres­são para os restringir, para os secundarizar ou considerá-los empecilhos na prossecução de um suposto bem maior. A memória, a história e a cons­ciência da centralidade da dig­nidade humana devem consti­tuir um escudo impenetrável a qualquer ataque contra os direitos fundamentais e um travão efectivo a tentativas in­sidiosas de os limitar, sob que pretexto for.

         Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 30 de Agosto de 2017

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