segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Interesses de ocasião

O Presidente da República a discursar na cerimónia de tomada de posse de novos membros do governo pôs enfase na importância da estabilidade política e social do país como factor fundamental para o desenvolvimento. Apontou o desenvolvimento inclusivo, a justiça social, a solidariedade com os mais vulneráveis e o reforço institucional como necessários para se garantir a estabilidade, mas considerou como elemento determinante a Segurança e a Ordem Pública.
É evidente que a memória dos três dias de greve da polícia nacional da semana anterior esteve sempre presente ao longo do discurso. Não aconteceu o pior, mas a autoridade do Estado ficou beliscada com o espectáculo dos polícias a desfilarem ruidosamente pelas ruas e a negar-se ao cumprimento da requisição civil decretada pelo governo. Não é por acaso que o PR, apesar de reconhecer os interesses em causa no processo que levou à greve, foi peremptório em dizer que a sociedade não pode ficar à mercê de interesses de ocasião.
Greve da polícia é sempre problemática por razões óbvias que têm a ver com a necessidade permanente de garantir a todo o momento a ordem, a tranquilidade e a segurança pública. Geralmente é proibida nas democracias. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos em resposta a um recurso de um sindicato espanhol da polícia foi claro a dizer que a polícia, pelo facto de todos os agentes estarem armados e da necessidade deles prestarem um serviço ininterrupto, não pode fazer greve na medida em que tal acção põe em causa a segurança pública e a prevenção da desordem. O tribunal acrescenta que o facto de estarem armados os faz diferentes de outros servidores públicos e justifica a restrição dos seus direitos a se organizarem.
A Constituição cabo-verdiana, apesar de prever a possibilidade da lei restringir designadamente os direitos dos agentes à reunião, manifestação e associação, não é explícita quanto à proibição ao direito à greve como o faz, por exemplo, a Constituição portuguesa. Se para vários juristas há o entendimento que a lei pode restringir mesmo no actual quadro constitucional para o sindicato e os polícias que participaram na greve não parece não haver qualquer dúvida quanto à sua legalidade. Isso significa que poderá haver mais greves no futuro. Desta vez não aconteceu nada fora do ordinário e não houve colapso da ordem jurídico-constitucional, mas nada garante que será o mesmo num outro momento.
Aparentemente o aviso de pré-greve em Março de 2017 falhou em alertar as autoridades para a possibilidade real de uma greve da polícia e de possíveis consequências disso. A forma como o governo pareceu ter sido apanhado de surpresa tanto pela greve como pela recusa de muitos agentes em aceitar a requisição civil sugere que não levou suficientemente a sério as ameaças do sindicato em Março nem o pré-aviso de greve de 14 de Dezembro. Sinais de alguma agitação reivindicativa também se fizeram sentir noutras forças ao longo do ano e em particular nos agentes prisionais. Não se notou porém qualquer acção do governo em clarificar o estatuto das forças de segurança em matéria de direito à greve e de direito à reunião e manifestação. Também não se conhece iniciativa em sede da revisão constitucional para abrir o diálogo sobre o assunto e criar vontade política para uma solução definitiva do problema. O mais estranho é que perante essas omissões não parece que em algum momento tivessem sido desenvolvidos planos de contingência com provável assistência dos militares na sua missão de defender a ordem constitucional num caso de colapso da segurança pública provocado por uma greve generalizada da polícia nacional. O que se viu foi a tentativa de requisição civil que o sindicato e vários agentes se recursaram a cumprir.
O presidente da república na sua intervenção fez um apelo para se concretizar aquilo a que chamou de “concordância prática” entre exigências do estado de direito democrático em confronto. Em particular diz que é importante o diálogo, qualquer diálogo que se destine a afastar o espectro da inquietação social. Não é um apelo que tem grandes possibilidades de chegar às pessoas nestes tempos em que já se tornou normal noticiar as reacções perante qualquer agravo ou diferença de opinião como sendo de indignação ou de revolta. Nem mesmo parece chegar onde mais investimentos se fez, como é o caso da polícia. O governo saído das legislativas de Março de 2016 já no orçamento de 2017 tinha feito um esforço orçamental apreciável de mais 178 mil contos para ajustes salariais, progressões e promoções na polícia e milhares de contos tinham sido investidos em viaturas, equipamento de comunicações e outros meios essenciais para a corporacão. Mesmo assim, parece não ter encontrado espaço para um diálogo construtivo. Satisfeitas as reivindicações antigas, pede-se logo mais.
A não disposição para o diálogo que ficou manifesta na relação com a polícia é sentida noutros sectores da sociedade e em particular em sectores da administração pública em que é mais fácil desenvolver-se o espírito corporativo. Pergunta-se até onde ficou a paz social que estaria implícita no acordo de concertação estratégica que o governo assinou com os parceiros sociais. Por outro lado, sente-se que o défice em serviço público que todos se queixam em relação à administração pública tem a sua contraparte no esforço dirigido para manter os privilégios e obter uma maior fatia de recursos públicos. No processo, perde-se eficiência e a eficácia na mesma proporção que aumentam as resistências a reformas que realmente podiam mudar o status quo. Isso é evidente no domínio da segurança, como o é nos domínios da justiça ou da educação e em vários outros sectores da actividade no país. Aliás, as queixas das pessoas, os índices de competitividade e os dados do Doing Business apontam precisamente para aí.
Nesta encruzilhada na vida do país o grande desafio será fazer as pessoas deixarem de competir por recursos num jogo de soma zelo e cooperar mais, conter os interesses corporativos e dar mais atenção ao interesse geral e posicionar-se mais para criar riqueza, conhecimentos e competências várias em vez de simplesmente usufruir do que é dado ou retirado aos outros. O futuro vai depender de quando e como o soubermos vencer.
Humberto Cardoso


Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 841 de 10 de Janeiro de 2017.

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