segunda-feira, 25 de junho de 2018

Facilitismo na legalização de imigrantes

A Assembleia Nacional vai na próxima semana discutir um projecto de lei apresentado pela maior força da oposição, o PAICV, cujo objecto é a regularização da situação de cidadãos oriundos da CEDEAO que se encontram em Cabo Verde sem autorização legal de permanência. No preâmbulo da lei o PAICV diz que avança com a iniciativa movido por “um imperativo moral e político, tributário de uma amizade especial” para com os imigrantes vindos da costa ocidental africana, uma amizade que remonta “à luta de libertação nacional”.
Ao procurar no texto fundamentação para a proposta constata-se logo nos primeiros parágrafos que não há um conhecimento real da situação da imigração no país. Assim no que respeita à dimensão do fenómeno simplesmente “estima-se em número elevado de cidadãos estrangeiros”; quanto à proveniência dos mesmos não há certezas mas “é percepção generalizada que muitos são originários da CEDEAO”; e quanto aos pedidos de legalização contenta-se com o facto de que “é de conhecimento público que existem muitos pedidos pendentes”. Sem dados concretos o proponente fica por estimativas, percepções generalizadas e suposições. Não parece que esse seja a melhor base para legislar. A complexidade da matéria deveria sugerir uma abordagem mais cuidada, mais suportada nos factos e mais ponderada nas medidas a serem tomadas considerando as consequências de eventuais maus passos numa pequena sociedade como Cabo Verde.
Assuntos tão importantes e delicados do Estado como é questão da imigração deviam merecer um outro tratamento das forças políticas, em particular das situadas no arco da governação, estejam elas no governo ou na oposição. Se o dia-a-dia do país não os desperta para a enormidade do problema e das dificuldades que pode causar, a observação do que se passa um pouco por todo o mundo, mas em particular na Europa e nos Estados Unidos da América, devia ser motivo para alguma cautela. Como se sabe, nesses países, a problemática dos migrantes e também dos refugiados já contribuíram para mudanças na política nacional e na configuração das forças políticas. O mesmo tem acontecido no processo de emergência do populismo e de derivas iliberais acompanhadas de manifestações de xenofobia, de racismo e de intolerância. Também os países de passagem dos migrantes não ficaram incólumes. A corrupção e o crime alimentados pelo tráfico humano tendem a perpetuar a instabilidade, a insegurança e guerras sectárias que dilaceram essas sociedades. Questões como migrações internas ou fluxos exteriores não deviam ser tratadas de ânimo leve ou servir de pretexto para exibições de populismo e confrontos demagógicos. As consequências desses exercícios nem sempre são controláveis e quase sempre deixam marcas profundas na memória colectiva.
Cabo Verde, neste momento, depara-se com fluxos internos de pessoas sob pressão do exterior. Para além das costumeiras movimentações em direcção às cidades de Praia e Mindelo a procura turística vinda do estrangeiro introduziu uma nova dinâmica no fluxo inter-ilhas focando-se essencialmente sobre as ilhas que menos população tinham. O caso paradigmático é o da ilha da Boa Vista que antes de ser o destino procurado pelos grandes operadores turísticos tinha cerca de 4 mil habitantes. Em menor grau, o mesmo aconteceu com a ilha do Sal. Mas, como não se pode desenvolver actividade económica sem mão-de-obra, era óbvio que milhares de pessoas das diferentes ilhas iriam deslocar-se para onde poderiam conseguir trabalho. Só foi aparentemente surpresa para o governo de então que tardou em identificar os múltiplos e complexos problemas de fazer crescer a população na ilha sem fazer os investimentos públicos indispensáveis, sem um ambiente de negócios e um mercado de trabalho devidamente regulados e sem a sensibilidade necessária para preservar o legado histórico-cultural que cada ilha soube construir ao longo dos séculos. E como foram sistematicamente empurrados para debaixo do tapete os problemas persistiram, amplificaram-se ainda mais e afectam o destino dessas pessoas na forma como se vêem a si próprios e como interagem com os outros. Resolvê-los de uma forma compreensiva e abrangente dificilmente iria compadecer com iniciativas avulsas como o que parece ser esta regularização de imigrantes ilegais. Aliás, este é um problema em grande parte criado por omissão e pela incapacidade de desenvolver e implementar uma estratégia de mobilização e formação de mão-de-obra qualificada que o país, e em particular algumas ilhas, tanto precisavam.
As razões e fundamentações para a apresentação do projecto-lei mostram como sectores da classe política ainda continuam “distraídos” quanto às questões fundamentais que se colocam ao país. O foco em ganhos de curto prazo junto ao eleitorado ou à custa de quem governa mantém-se como objectivo pessoal e partidário dos líderes. Nem o facto de o mundo à volta estar a dar sinais de se desmoronar sob o impacto dos sucessivos desafios que as políticas do presidente Trump tem colocado à ordem mundial consegue alterar isso. Ninguém aparentemente se incomoda que o mundo, marcado pelo apego ao primado da lei, pela defesa da democracia e dos direitos humanos e pela promoção do comércio livre entre as nações e que propiciou prosperidade a uma parcela importante da humanidade em todos os continentes, poderá estar em perigo com os assaltos sucessivos protagonizados por Donald Trump e por muitos outros políticos populistas que aparecem por aí.
Na estreiteza de visão que faz escola em Cabo Verde, as guerras comerciais e as zangas entre as grandes potências do G7 não afectam a ninguém. O país parece “blindado” a isso. Esquecem porventura que as instituições internacionais que canalizam a ajuda ao desenvolvimento também são produtos dessa mesma época da PAX Americana. Com ataques a partes fundamentais não há que espantar se todo o edifício se desmorona. Há que se preparar para todos esses cenários num ambiente em que a política não pode só ficar por ganhos de curto prazo, por iniciativas como a da regionalização e, agora, a da regularização de ilegais que muito dificilmente vão resolver os problemas do país. Há que dar o salto e ver que problemas seculares como a seca persistem e que só com uma outra atitude de todos, na democracia e respeitando o pluralismo mas procurando o bem geral, se poderá equacionar e respondê-los a contente de todos.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 864 de 20 de Junho de 2018.

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