segunda-feira, 16 de julho de 2018

SOFA gera controvérsia

É cada vez mais frequente no mundo globalizado e interconectado de hoje os países procurarem estabelecer parcerias especiais. As razões invocadas são múltiplas, mas fundamentalmente têm natureza política e económica ou são ditadas pela necessidade de segurança mútua. Na generalidade dos casos a relação entre estados, seja no quadro de uma comunidade económica, de uma aliança militar ou de uma simples parceria para paz e segurança implica cedências de soberania.
Por isso mesmo o caminho para ali chegar nunca está livre de espinhos e escolhos. Mesmo quando se chega ao fim e a parceria funciona normalmente não cessam as críticas, não desaparece a sensação que se cedeu demais ou que a contrapartida não é a melhor. Prova disso, mesmo em parcerias há muito consolidadas, são as tensões à volta do euro, à volta das migrações e das directivas da Comissão Europeia que levam muitos dos estados membros a ressentirem-se contra o que consideram cedência excessiva às instituições da Europa. Tensões similares são percebidas em blocos económicos como a NAFTA e a CEDEAO e entre os países integrantes da NATO.
Em Cabo Verde a discussão do Acordo do Estatuto das Forças Militares Americanas (SOFA, da sigla inglesa) que poderão num momento ou outro estar em Cabo Verde no quadro da parceria para segurança também está a ser motivo de grande controvérsia, envolvendo os partidos políticos e a sociedade. Para os Estados Unidos a controvérsia não é novidade considerando que se verificou e em muitos casos continua a se verificar na generalidade dos mais de 100 estados com quem já assinou um SOFA. Há um entendimento que é legítimo que se queira saber em que a medida a presença de tropas estrangeiras vai ter implicações na relação do país com o exterior, como irá afectar a sociedade e que impacto eventualmente terá na economia. Claro que se é mais sensível a essas questões se, como no caso de Cabo Verde, sempre predominou no país uma postura oficial de não alinhamento com blocos militares traduzida ainda na recusa constitucionalizada de bases militares estrangeiras. Não espanta pois que o debate sobre a matéria se tenha exacerbado e trazidas à baila questões de identidade e de patriotismo, a par de dúvidas quanto à conformidade à Constituição do SOFA aprovado na Assembleia Nacional pela maioria parlamentar do MpD com abstenção dos deputados do PAICV e da UCID.
A realidade do mundo de hoje já não é a de blocos militares ideologicamente antagónicos a se ameaçarem mutuamente com armas nucleares. Os problemas maiores de segurança advêm principalmente do terrorismo, dos diferentes tráficos, da pirataria marítima e do crime organizado. São ameaças caracterizadas por nem sempre terem rosto visível, por não serem corporizadas por um Estado e também por tomarem toda a gente como alvo potencial. Reconhecendo a nova realidade, na revisão da Constituição de 2010 introduziu-se no n.2 do artigo 11º das relações internacionais que o Estado de Cabo Verde “participa no combate internacional contra o terrorismo e a criminalidade organizada transnacional”. A partir daí, o país já não é mais neutro porque ele próprio está sob ameaça dessas entidades subestatais e não tendo meios próprios para as enfrentar sozinho deve procurar parcerias internacionais para garantir a sua própria segurança e não permitir que nenhum ponto do seu território sirva de base ou depósito para tráfico de drogas, lavagem de dinheiro ou para qualquer tipo de suporte de acções terroristas. É evidente que a colaboração com outros estados no quadro de parcerias para a defesa e segurança do país terá de implicar cedências no domínio da soberania. O quanto que se deve ceder certamente que vai ser sempre matéria de controvérsia, mas decisões devem ser tomadas e em tempo útil porque a escolha poderá ser entre, por um lado, no presente não ter controlo completo do próprio território porque não se tem nem os recursos nem a necessária cooperação de forças estrangeiras para isso, e, por outro, orgulhosamente proclamar que não se quer bases militares estrangeiras numa recusa que teria razão de ser em tempos da guerra fria mas que actualmente na era dos drones e das operações especiais não faz sentido. Hoje a tendência é abandonar as bases permanentes como deverá acontecer com a base americana das Lajes, nos Açores.
Na concretização da cooperação quase incontornável para se garantir segurança contra as ameaças transnacionais um dos problemas mais melindrosos é o da jurisdição criminal, civil e administrativa. A pergunta é se a jurisdição deve ser concorrencial entre os dois estados ou ficar só com o estado de origem do contingente militar e não com o estado hóspede. Os Estados Unidos da América compreensivelmente procuram subtrair todos os seus soldados e funcionários a qualquer tipo de jurisdição do Estado hóspede. Na prática, os SOFAs que tem negociado designadamente com os países da NATO, o Japão e a Coreia têm variantes conforme a resistência encontrada junto do estado hóspede e também o seu próprio interesse em ter uma presença no país mesmo quando o estatuto das suas tropas num quadro do SOFA não seja o ideal. De acordo com o documento do Departamento do Estado americano citado por este jornal na edição anterior, esse ideal consubstanciado num Global Sofa Template só foi aceite completamente por alguns micro-estados. Imagina-se que quem o aceitou fez uma opção para ceder em termos de soberania e de jurisdição criminal no seu território em troca de ganhar em segurança. Certamente que terá razões para isso e as deverá apresentar a eventuais críticos ou opositores..
O SOFA aprovado em Junho último no parlamento não foi o primeiro adoptado por Cabo Verde. Em 2006, aprovou um SOFA para as forças da NATO que vieram participar nos exercícios militares da Steadfast Jaguar. Nesse SOFA houve naturalmente cedências em matéria de jurisdição criminal e civil, mas no nº 4 do artigo 7 (BO de 2 de Janeiro de 2006) deixou-se a possibilidade de “em casos específicos, Cabo Verde puder solicitar que renunciem à imunidade de jurisdição do Estado de Origem relativamente aos seu pessoal militar ou civil presente”. Também em 2008 no acordo de Cabo Verde com a Espanha foi aprovado um SOFA que no artigo 9º nº 2 dizia que “Cada uma das partes considerará a possibilidade de renunciar às imunidades criminais que os membros das suas forças usufruem a pedido de outra, em situações que se justifique a realização de um processo no próprio local do crime, por motivos de especial gravidade do crime”.
No SOFA com os Estados Unidos, assinado dez anos depois, autorizou-se os Estados Unidos a exercer jurisdição penal sobre as tropas durante a sua permanência em Cabo Verde sob a justificação da necessidade de controlo disciplinar das mesmas (artigo III , nº 2). Como o documento do Departamento do Estado acima referido deixa claro essa, é uma cláusula vivamente procurada pela América para garantir que se vá além da Convenção de Viena e se institua, de facto, a exclusividade da sua jurisdição penal. Certamente que o governo cabo-verdiano ao assinar e fazer aprovar o SOFA terá as suas razões. Seria bom que as explicitasse e as contextualizasse para a tranquilidade dos caboverdianos.
Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 867 de 11 de Julho de 2018.

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