Depois de meses a assistir ao desgaste do parlamento
devido, entre outros factores, à excessiva crispação das forças
políticas, à duvidosa organização e gestão dos trabalhos parlamentares e
às ausências prolongadas e injustificadas do primeiro-ministro em
sessões sucessivas da Assembleia Nacional, o país depara-se agora com
despiques públicos entre o Presidente da República e o governo.
É
uma situação que não beneficia ninguém e muito pelo contrário tende a
enfraquecer a imagem das instituições e a minar a confiança na
democracia. Nos tempos actuais – em que a tentação populista na
abordagem e resolução dos problemas associada ao acesso rápido e quase
universal das pessoas às redes sociais põe especial desafio às
democracias – todo o cuidado é pouco na gestão do processo político
essencial para que o desenvolvimento do país se faça na liberdade e no
pluralismo. O que menos se precisa é que se aumente e se aprofunde a
descrença nos princípios e valores democráticos por razões ligadas à
actuação de titulares de órgãos de soberania e de dirigentes políticos
ávidos de protagonismo e pouco dispostos a seguir procedimentos já
sedimentados, mesmo na nossa jovem democracia, nas relações entre o
presidente, o governo e o parlamento.
A tensão entre o presidente
da república e o governo, aparentemente à volta do SOFA, veio depois
provar que afinal ela tem uma origem mais profunda que é de saber quem
tem competência para dirigir a política externa do país. Pelas
declarações feitas à TCV, no dia 20 de Setembro de 2017, apercebe-se
claramente que o PR pensa que, por exemplo, no caso do acordo SOFA com
os Estados Unidos da América o seu papel não deve ser apenas de
ratificar o acordo depois de negociado e assinado pelo governo e levado
ao parlamento para discussão e aprovação como parece estipular a alínea
a) do artigo 136º da Constituição. O PR mostra-se convicto de que em
matéria de acordos internacionais não deve apenas ser informado nos
encontros regulares com o primeiro-ministro mas que deve “haver
acompanhamento das negociações e até em certos casos o assentimento
prévio do Chefe do Estado para que na altura da ratificação não haja
situações..”. Prossegue suas declarações dizendo que a intervenção é “pedagógica” mas na realidade pela alusão ao “assentimento prévio” do PR em certos pontos negociais a impressão com que se fica é que pretende ter participação efectiva no processo.
É
um facto que o PR tem um papel a desempenhar na política externa no
âmbito da sua função de representação externa da República. Também é um
dado assente que quem constitucionalmente dirige a política interna e
externa do país é o governo. Desde os primórdios da Constituição de
1992 o regime democrático cabo-verdiano foi caracterizado como
“parlamentarismo mitigado”. Diferentemente do semi-presidencialismo
português, o governo em Cabo Verde não é responsável politicamente
perante o presidente da república. Por isso estranha que haja quem pense
que o PR em Cabo Verde possa ter competências ou protagonismo na
direcção da política externa do país que nem no sistema português actual
nem no sistema francês no quadro da coabitação Miterrand/Chirac e
Chirac/Jospin, todos de pendor presidencial mais pronunciado, os
presidentes da república pareciam ostentar. É só ver como na fotografia
oficial da recente Cimeira da CPLP a dupla Marcelo Rebelo de Sousa e
António Costa protocolarmente se apresentava enquanto o PR cabo-verdiano
se encontrava no centro com o PM Ulisses Correia e Silva distante junto
à secretária executiva da CPLP. Não é essa a imagem que se tem, por
exemplo, do presidente Miterrand e do primeiro-ministro Chirac nas
cimeiras internacionais em que a França participava.
Exemplos
que vêm de países recentemente democráticos, mas que já mostram sinais
de crise e tendências populistas e autoritárias pronunciadas dão-nos
conta de que tudo aparentemente começa quando partes do sistema político
começam a bordejar as fronteiras das suas competências e acabam em
incursões nas competências das outras. Ao reagir - seja no formato de
aceitação de diminuição a que é sujeita, seja da luta que terá que fazer
para se reafirmar – a parte agravada incorre no risco de ver a sua
imagem diminuída, abrindo espaço para o desprestígio das instituições
aos olhos dos cidadãos. Dos ataques que de há muito têm sido dirigidos à
justiça e ao parlamento já se vêem as consequências. Com o governo e a
presidência da república num terreno movediço que só pode levar ao
desprestígio dos envolvidos, a situação só pode piorar. O ambiente de
crispação política extrema em que a luta política tende a ficar pelas
conveniências do momento e pela postura quase tribal dos militantes e
activistas pode deixar o sistema sem defensor consequente perante as
múltiplas ameaças que hoje se apresentam contra a democracia
representativa e contra o Estado de direito.
Há que arrepiar
caminho. Vários exemplos vindos todos os dias de fora dizem-nos que
ataque aos media, à eficácia da justiça e ao parlamento não traz nada de
bom para a democracia. Que também não é boa opção demonizar a oposição
mesmo quando ela lá no íntimo se considera uma espécie de “Dono Disto
Tudo” e mais preocupada em preservar o seu legado histórico do que em
defender o sistema democrático. Há finalmente que defender as
instituições e garantir que se tornem perenes e que sejam colocadas ao
serviço de todos. Experiências democráticas confrontadas com derivas
populistas ou autoritárias confirmam que só com instituições construídas
sobre princípios e valores democráticos é que se pode ter esperança de
combater os excessos de protagonismo e conter com eficácia a ameaça que
parece pairar sobre todos e que servindo-se de fake news e do
ilusionismo põem em causa os factos e a verdade, erigem a desonestidade,
o tacticismo conveniente e o eleitoralismo como forma de fazer política
e de conquistar e de se manter no poder.
Humberto Cardoso
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 875 de 5 de Setembro de 2018.
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