segunda-feira, 18 de março de 2019

Corda esticada

Há dias Marcelo Rebelo de Sousa, na resposta à pergunta o que falta a Portugal para sair de cepa torta, disse: faltam consensos de regime em matérias básicas, não há uma atenção dos protagonistas políticos à reforma do Estado e falta capacidade de antecipação e de fortalecimento da sociedade civil. As três dicas do presidente português podiam ter aplicação directa em Cabo Verde.
 No país reina um ambiente de crispação política e não há uma base política comum seja para entendimentos, seja para contraditórios construtivos. Quanto às reformas constata-se que, apesar de promessas repetidas da classe política, a máquina do Estado mantém-se no essencial centralizadora e burocrática e os interesses corporativos devidamente salvaguardados. E em relação à sociedade civil pouco mudou no grau de sua dependência do Estado e na capacidade de autonomamente forçar alterações profundas na forma da condução dos assuntos públicos. O caso último da privatização do negócio internacional da TACV é ilustrativo a esse respeito.
A situação da empresa era por todos conhecida. Foi notório como o arresto do avião em Amsterdão precipitou a derrota eleitoral do partido então no governo. Por outro lado, ninguém desconhecia a sangria que representava para as finanças públicas. Apesar da extrema gravidade do caso TACV (dívida de mais de 100 milhões de dólares e permanente risco orçamental) foi impossível criar entre os principais partidos qualquer base de discussão do futuro da transportadora. O mesmo aconteceu face a outras situações graves designadamente com o programa Casa para Todos bloqueado sob o peso de uma dívida de 200 milhões de dólares e com o Novo Banco em virtual estado de insolvência. Quando veio a seca de 2017 que deixou a nu a vulnerabilidade da população apesar dos muitos milhões que tinham sido investidos no mundo rural também não se conseguiu criar uma base de consenso para equacionar intervenções com vista a minorar a precariedade actual e abrir o caminho para um futuro com prosperidade. Algo similar já tinha acontecido numa outra situação extrema como foi a da erupção vulcânica do Fogo em Dezembro de 2014. Picardias político-partidárias passam a dominar o espaço público, em particular o debate parlamentar, e logo de seguida fica comprometida a eficácia da acção pública junto de quem mais necessita.
O sentimento que se vive hoje no país é que metaforicamente se esticou a corda toda. Não é só a TACV que ultrapassou o limite da sustentabilidade. Os transportes marítimos na sequência de acidentes e afundamentos seguiam o mesmo caminho. A dívida pública subiu para níveis muito superiores a 100% do PIB que deixam o Estado quase sem margem para prosseguir com investimentos públicos indispensáveis. A situação habitacional agravou-se apesar dos milhões gastos no Casa para Todos. A segurança não obstante os enormes investimentos ainda não dá confiança ao movimento livre e despreocupado de cidadãos e estrangeiros em todas as cidades e nos vários pontos do país mesmo considerando indícios recentes de se estar a inflectir a situação da criminalidade. A educação apesar dos investimentos das famílias e do Estado nos três níveis de ensino ficou aquém do esperado na preparação dos jovens para o mercado de trabalho e enquanto factor de competitividade da economia. E os custos crescentes da saúde devido ao aumento da esperança de vida, mudanças no perfil das doenças mais frequentes e investimentos necessários em instalações e equipamentos estão cada vez mais difíceis de serem suportados por uma economia há pouco tempo saído de um ciclo longo de crescimento raso.
Depois da corda esticada seguindo o tipo de políticas enquadradas no modelo de reciclagem da ajuda externa quis-se virar para outros sectores da economia. O facto porém é que o sector privado nacional que poderia trazer dinâmica económica não parece descolar seja por causa de financiamento, seja pelos exagerados custos de factores, pela insensibilidade da administração pública ou por falta de acesso a mercados estruturados. Os investimentos externos no domínio do turismo concentrados nas ilhas do Sal e da Boa Vista por falta de estratégia dos poderes públicos a vários níveis ainda não se mostram capazes de impactar a economia nacional como seria desejável. Mesmo assim são os empreendimentos no domínio do turismo e as unidades industriais criadas pelo capital externo que mais criam empregos e suportam as exportações de bens. Para a elite dirigente distraída pelas lutas partidárias não há consciência clara da realidade de se ter há muito atingido o limite na aplicação de certas políticas e da necessidade de agir para sair da armadilha. Não há o sentimento da urgência do agora como diria o ex-presidente americano Barack Obama.
Por isso é que em qualquer matéria que venha à discussão pública seja a ela a TACV, a problemática dos transportes marítimos, o futuro do Trust Fund, concessão de aeroportos, estratégias para as telecomunicações, para agricultura e pecuária, estratégia para educação e para a política energética cada um traz a sua verdade normalmente de um passado congelado no tempo e sem um pingo de responsabilidade pelas consequências de actos e omissões cometidos. Claro que o diálogo só pode ser o de surdos. No processo o país perde, os cidadãos ficam sem dados fiáveis para compreender o que está em causa e o nível do debate tende a piorar porque cada vez mais distancia-se dos factos para ficar com as “verdades” convenientes de cada um. Prioriza-se a exploração de paixões, a identificação com a cor política e as promessas demagógicas porque distantes da realidade dos recursos disponíveis. Com esta atitude continua-se a esticar a corda mesmo perante resultados decrescentes. Os países que se desenvolveram só o conseguiram ultrapassando o círculo vicioso que impede de facto o país “sair da cepa torta”.
Diz-se que neste mundo cada vez mais centrado em questões identitárias a política tende a imitar cada vez mais o futebol. A postura dos partidos e dos cidadãos assemelha-se à perspectiva clubista que só vê a realidade pelo filtro dos clubes levando a sectarismos diversos, à violência e também a qualquer impossibilidade de se chegar a consensos sobre qualquer matéria não interessando a relevância, urgência ou importância estratégica. Na verdade, exemplos espelhados pelo mundo deixam saber que a posição clubista na política tem sido pior do que no mundo do desporto. Os ataques sectários não poupam nada, nem as instituições, nem os procedimentos democráticos e nem o próprio Estado de Direito, e levam à degradação gradual da democracia. No futebol pelo menos procura-se garantir que as regras sejam cumpridas, os árbitros respeitados e a integridade dos jogadores assegurada. Consegue-se que os jogos cheguem ao fim com resultado claro, que se realizem campeonatos nacionais sem disputas intermináveis e que de quatro em quatro anos o futebol seja o espectáculo planetário das Copas do Mundo. A democracia e o Estado de Direito com a sua importância central para a o exercício da Liberdade deviam merecer o mesmo. Substituindo narrativas de ressentimento que estão na base dessas identidades sectárias por narrativas de possibilidade não se estaria nunca em posição de ver a corda esticada e por isso limitado o horizonte do possível.

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa doexpresso das ilhasnº 902 de 13 de Março de 2019.

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