segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

13 de Janeiro - Trinta anos depois

 Hoje celebra-se o trigésimo aniversário do momento fundante do Cabo Verde moderno, livre e democrático. No distante dia 13 de Janeiro de 1991 realizaram-se as primeiras eleições livres e plurais.

Só por isso a data já merecia ficar registada e ser comemorada como o dia em que na liberdade pela primeira vez foi exercida a vontade soberana do povo e através dela se legitimou o exercício do poder político na república. Afinal, em certo sentido, a democracia define-se como governo da maioria que resulta de eleições periódicas e pluripartidárias. E foi nesse dia que tudo começou.

O 13 de Janeiro ganhou uma importância ainda mais fulcral para o devir do país com o resultado eleitoral obtido ao assegurar uma maioria qualificada de mais de dois terços dos deputados ao partido da mudança. A decisão popular em mudar o regime político foi claramente expressa. O caminho ficou aberto para a adopção de uma Constituição liberal e democrática que firmemente e sem ambiguidades passou a garantir o respeito pela dignidade humana e a reconhecer a inviolabilidade e inalienabilidade dos direitos fundamentais dos indivíduos.

O quadro político da transição democrática estabelecido unilateralmente pelo então partido único excluía a possibilidade de uma assembleia constituinte para dotar o país de uma nova Constituição. A opção feita em Setembro de 1990 foi de fazer alterações na Constituição de 1980 para permitir a participação de outros partidos e a realização de eleições livres e também para, em conformidade com o sistema de governo semipresidencialista escolhido, redefinir competências do presidente da república e do parlamento. Na prática, enxertava-se na antiga Constituição algumas normas que permitiam um funcionamento num ambiente político-partidário plural deixando o resto praticamente inalterado em particular no domínio dos direitos, liberdades e garantias e no que respeitava ao poder judicial.

Retrospectivamente, pode-se ver que sem uma maioria qualificada para adoptar uma nova Constituição, o pluripartidarismo cabo-verdiano provavelmente iria conhecer anos de instabilidade e não teria adoptado os valores civilizacionais que o catálogo de direitos da Constituição de 1992 consubstanciam. Neste aspecto são esclarecedores os anos de instabilidade na Guiné-Bissau e noutros PALOP, e também na Nicarágua e na Argélia, entre vários outros países que na época fizeram a sua transição para a democracia, que foram provocados em boa parte por essa espécie de “hibridismo” constitucional. Por causa dos resultados do 13 de Janeiro Cabo Verde teve sorte nesse aspecto e essa é uma das razões por que tem beneficiado de governos estáveis nestes trinta anos e tem conduzido processos de transferência de poder em momentos de alternância política com absoluta tranquilidade.

O facto de o país ter tido oportunidade de fazer uma Constituição liberal e democrática num quadro consensual não significa porém que o tenha conseguido realmente. Ficou suficiente areia nas engrenagens institucionais para dificultar a emergência e a consolidação de uma cultura democrática. Como alguém já disse “a democracia é obra comum de partidos rivais, sob a autoridade comum de regras gerais e iguais para todos”. Não pode haver outras legitimidades para o exercício do poder que não a legitimidade democrática. De outra forma todo o processo democrático de confronto da realidade do país, suportado na base dos factos e orientado para a descoberta da verdade, é escamoteado e substituído por narrativas estanques em colisão permanente. Da experiência de Cabo Verde se pode comprovar que daí só pode vir mais polarização política e exercícios em pós-verdade e fake news com os seus males em termos de esterilidade do discurso político, de diminuição da participação política e de uma maior partidocracia a querer resvalar para adulação dos líderes, todos eles cada vez mais autocráticos.

Durante o ano de 1989 o mundo assistiu fascinado ao desmoronar do império soviético na Europa de Leste que culminou com a queda do Muro de Berlim, em Novembro, depois de ter passado pela Polónia e pela Hungria. Seguiram-se depois a revolução de veludo na Checoslováquia e a execução sangrenta dos Ceaucescu na Roménia. Em Janeiro/Fevereiro de 1990 terminou o monopólio político do partido/Estado na Argélia e na União Soviética. A vez de Cabo Verde chegaria com a chamada abertura política iniciada a 19 de Fevereiro.

Da análise desses casos, um facto a assinalar é que quase sempre a iniciativa partia dos ditadores tentando fazer fuga em frente para manterem o país sob controlo. Na maior parte das vezes eram ultrapassados pelos acontecimentos e escorraçados do poder. A realidade inescapável então vivida nos fins da década de oitenta é que reformas na URSS de Gorbatchev e noutros países tinham desencadeado uma onda da democracia que percorreu o mundo derrubando regimes ditatoriais em todos continentes. Houve mesmo quem tenha proclamado o fim da história com a vitória da democracia e com a aceitação universal dos direitos do homem.

Trinta anos depois constata-se porém que afinal a história não acabou. Conflitos entre nações continuam a existir e regimes autocráticos emergentes desafiam as democracias, apresentando-se como um outro modelo bem-sucedido de organização do Estado. Mesmo em várias democracias notam-se derivas chamadas de iliberais que procuram restringir direitos entre os quais a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa e põem em causa a independência dos tribunais. Fala-se hoje de recessão democrática num mundo em que as democracias tanto antigas como as mais recentes estão a braços com uma crise profunda que se apresenta como uma crise de representação e uma crise das instituições de mediação acompanhadas de uma espécie de atracção fatal tanto para o populismo de esquerda como da direita.

Assim como em 1989/90 ninguém ficou imune aos efeitos da onda democrática também agora parece que ninguém consegue fugir à crise da democracia. Na semana passada todo o mundo pôde observar o assalto da população ao centro da democracia na América, o Capitólio, e como as pessoas foram atiçadas pelo próprio presidente a usar meios violentos para bloquearem os trabalhos do Congresso. Em maior ou menor grau os ataques à democracia que invariavelmente tomam a forma de agressão ao parlamento, aos órgãos de comunicação social e aos tribunais acontecem um pouco por todo o lado. Também nota-se que nem sempre vêm de fora e que os golpes mais violentos normalmente têm origem precisamente em entidades como partidos, governos e líderes que supostamente deveriam defender o sistema democrático.

Em Cabo Verde os sinais típicos da crise da democracia estão presentes e vêem-se nas instituições, nos partidos, nas relações entre os órgãos de soberania e na participação política dos cidadãos marcada muitas vezes por sentimentos de descrédito ou por uma postura cínica. A América de Trump em plena pandemia do coronavírus veio demonstrar o grau de impotência que pode chegar a sociedade mais desenvolvida do mundo se se deixar que o discurso público seja dominado por mentiras, que teorias conspiratórias consigam criar verdades alternativas e que o poder do Estado e a influência dos líderes sejam utilizados para mobilizar paixões, alimentar ressentimentos e direccionar ódios. Neste trigésimo aniversário do 13 de Janeiro é fundamental que ninguém se deixe tentar pelo negativismo que vem acompanhando e aprofundando a crise das democracias. Pelo contrário. Impõe-se que se recupere o estado de espírito positivo e de esperança de há trinta anos atrás para que mais uma vez se faça o país dar o salto para a modernidade e desenvolvimento comparável ao que verificou nos anos noventa, agora com mais sabedoria e sentido do futuro. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 998 de 13 de Janeiro de 2021.

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