sexta-feira, 19 de janeiro de 2024

Semana da República: a reconciliação que não foi

 

O presidente da república tem chamado a atenção para as ameaças à democracia em várias intervenções nos últimos dias, designadamente na sessão solene do 13 de Janeiro, o Dia da Liberdade e da Democracia e nas celebrações do 15 de Janeiro, Dia das Forças Armadas. Em ambos discursos do PR fica-se com forte impressão que considera que é na natureza da disputa entre os partidos políticos que reside o essencial da ameaça ao regime democrático. Uma disputa pelo poder que, segundo ele, “passa a ser uma disputa sem quartel, visando a liquidação do adversário, com acusações, calúnias, insultos, assassinato de carácter, muitas vezes sem possibilidade de defesa, afectando as instituições da República”. Daí que considera “a importância de se reinventar os partidos políticos” e, num outro registo, que face às ameaças à democracia é “fundamental, de mãos dadas, trabalhar para manter o prestígio e a dignidade das Forças Armadas”.

Apesar do PR terminar o discurso do dia 13 de Janeiro com vivas aos partidos políticos, é de se perguntar se não se está a reforçar o sentimento anti-partido com a sugestão de que o problema das democracias modernas (crise de representatividade, a nova realidade das redes sociais e desencanto e ressentimento por razões de exclusão) deve-se essencialmente à acção dos partidos. É que esse sentimento já existe em Cabo Verde devido às décadas de salazarismo, que era um regime anti-partido, seguido de quinze anos de regime de partido único, que era contra o multipartidarismo e devia-se ter algum cuidado em não o alimentar. Sabe-se perfeitamente que ter um sistema partidário funcional é fundamental para as democracias. Ameaças não vêm das disputas entre os partidos num ambiente de liberdade e pluralismo. O mais normal é que resultem do protagonismo de forças com narrativas anti-sistema, de movimentações para coarctar os direitos fundamentais e pôr em causa a independência dos tribunais e de nacionalismos identitários que em roupagens renovadas “tribalizam” a sociedade e impedem o exercício pleno da cidadania.

Mais grave vem se revelando o protagonismo de líderes e partidos que chegados ao poder via processos eleitorais democráticos imediatamente procuram reconfigurar a relação com outros poderes e instituições. Ampliam as suas competências em detrimento de outros órgãos de soberania com custos para o equilíbrio de poderes e criando tensões e instabilidade governativa. Já aconteceu em vários países. Na Polónia o novo governo do primeiro-ministro Tusk está a desenvolver um esforço enorme para reverter os estragos causados por esse tipo de ameaças à democracia. Nos Estados Unidos a preocupação é com a possibilidade, nas eleições de 2024, do regresso a uma presidência musculada e autoritária liderada por Donald Trump.

Em Cabo Verde o confronto que já se desenha entre o presidente da república de um lado, e o governo e a sua maioria parlamentar do outro, não augura nada de bom para os próximos tempos. Corre-se o risco de vê-lo arrastar durante todo o novo ciclo eleitoral que começa este ano e vai até 2026. E a tentação será forte para as forças políticas diversas tomarem partido no confronto, na perspectiva de conseguir vantagens na corrida para as eleições autárquicas e legislativas. A acontecer, como já se notam sinais claros de colagem às posições do presidente da república nas disputas de protagonismo com o governo, não há muita dúvida que os tempos próximos poderão ser de muitos sobressaltos. Aliás, a iniciativa presidencial da Semana da República já dá sinais de como se irá proceder daqui para a frente.

A Semana da República, que já vai na 13ª edição, foi uma iniciativa do presidente Jorge Carlos Fonseca com o objectivo, entre outros, de conseguir uma espécie de reconciliação com as duas datas nacionais: o 13 de Janeiro, Dia da Liberdade e da Democracia e o dia 20 de Janeiro, Dia dos Heróis Nacionais. A iniciativa não teve o sucesso desejado, as tensões continuaram e a data que simboliza a actual II República nunca teve o brilho que deveria merecer. Durante o seu primeiro mandato e com um governo e uma maioria parlamentar do PAICV nunca se conseguiu sequer aprovar a realização solene de comemoração no parlamento do Dia da Liberdade e da Democracia a exemplo da comemoração do 25 de Abril em Portugal ou do Dia da Constituição, em Espanha. Em contrapartida, acabou-se por instituir em cerimónia de Estado a colocação de flores na estátua de Amílcar Cabral, na Várzea, sem aparentemente qualquer formalidade legal de suporte.

Com uma nova maioria parlamentar do MpD, a partir de 2016 adoptou-se a sessão solene nas comemorações do 13 de Janeiro, mas a rivalidade entre as duas datas só se agravou com a reivindicação cada vez mais estridente da superioridade do 20 de Janeiro. Para uns, é simbólica, dá uma legitimidade histórica incontornável e inultrapassável. Daí, a crescente idolatria de Cabral e a colisão permanente com as instituições democráticas, cuja legitimidade provém do voto popular livre e plural expresso de acordo com a Constituição de 1992. A eleição do novo presidente da república, José Maria Neves, em 2021, veio dar um outro vigor à disputa. A Semana da República de 2024 vai ter o seu ponto alto com a Marcha Cabral sob o alto patrocínio do Presidente da República.

Claramente que neste quadro as disputas entre os partidos tendem a tomar expressões e tonalidades extremas porque os sistemas de referência, no fundo, opõem-se diametralmente. Os efeitos nas instituições ficam cada vez mais visíveis. Começa-se a questionar a legitimidade das decisões do parlamento com base no princípio do voto maioritário e procura-se minimizar o seu papel com pretensas recomendações do conselho da república que, de facto, é simplesmente o órgão de consulta do PR para matérias bem definidas na Constituição. Questões delicadas de politica externa e de defesa nacional cuja articulação entre o presidente da república e o governo, nos moldes definidos na Constituição e na lei, se espera que seja feita com a devida ponderação e discrição, tendem a tornar-se oportunidades para protagonismos que em nada beneficiam a imagem externa do país e afectam instituições sensíveis do país.

Também os problemas com que se depara a administração pública, particularmente no campo salarial das classes profissionais e que pela sua complexidade e responsabilidade cruzada dos sucessivos governos pela actual situação, requeriam especial atenção e cuidado no seu tratamento preparam-se para ser armas de arremesso em vésperas de pleitos eleitorais. Parece não importar o impacto orçamental das soluções propostas. Tudo parece ser legítimo para conquistar o poder, mas só o é realmente numa perspectiva de soma zero que é perpetuada pelo confronto aberto entre dois sistemas, duas legitimidades e duas narrativas do país e da sua história.

Infelizmente, não se avança para uma perspectiva de soma positiva, de win-win, em que o foco estaria no crescimento económico, no aumento da produtividade e da competitividade do país para melhor inclusão e mais justa redistribuição de rendimento. Para isso, ter-se-ia de cooperar, manter o consenso em questões fundamentais e de não cair em cultos de personalidade e armadilhas identitárias que retiram autonomia e iniciativa às pessoas e o espírito de responsabilidade que se deve ter com o presente e o futuro pessoal e familiar e também de Cabo Verde. 

Humberto Cardoso

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1155 de 17 de Janeiro de 2024.

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