O Mundo assistiu nos últimos dias a
extraordinárias manifestações de apoio à Liberdade e à Democracia. O assalto no
dia 7 de Janeiro à sede do Charlie Hebdo e o frio assassinato de cartoonistas,
jornalistas e polícias, perpetrados por terroristas a reclamar do Islão,
provocou uma reacção geral de choque e repúdio. Todos interpretaram essa
horrendo como um golpe directo desferido contra a rainha das liberdades: a
liberdade de expressão do pensamento e a liberdade de imprensa. A possibilidade
de um indivíduo poder se exprimir sem quaisquer peias, sanções ou represálias
está no cerne de todo o sistema de valores sobre o qual se assenta o edifício
civilizacional moderno que, fora algumas excepções, todos hoje se reclamam de
pertencer. O sentimento geral na sequência da tragédia de Paris é apanhado de
forma certeira na frase atribuída a Voltaire: "Eu desaprovo o que dizes, mas defenderei até a
morte o teu direito de dizê-lo" .
O direito à liberdade de expressão de
pensamento consta da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1789
proclamada após a Revolução Francesa, foi consagrada duzentos anos atrás na
primeira emenda da Constituição americana e desde então encima o catálogo dos
direitos fundamentais nas constituições democráticas. Cabo Verde, com a
Constituição de 1992, passou a integrar esse comboio civilizacional posto em
movimento desde o século XVIII pelo Iluminismo e que hoje, apesar das tentações
totalitárias do fascismo e do comunismo e de derivas autoritárias de vária
ordem, já tem a bordo uma boa parte da humanidade num número significativo de
países em todo o mundo.
O
avanço aparentemente imparável das liberdades não significa porém que
desapareceram os seus muitos inimigos. Também não significa que os descontentes
acabaram por acomodar-se à nova realidade da democracia e do pluralismo. Os
acontecimentos de Paris vêem demonstrar até que ponto alguns estão dispostos a
ir para precisamente limitar esse direito. Até procuram justificar-se e atrair
simpatia para as suas causas apresentando uma lista de ofensas que supostamente
jornalistas e cartoonistas fazem às suas crenças, símbolos e religião. Ainda
bem que as manifestações por todo mundo empunharam a bandeira “Je suis Charlie” para dar uma resposta
frontal a esse tipo de argumentos. Vieram dizer que mesmo que o conteúdo
produzido seja de mau gosto, ou mostre pouco senso e seja eventualmente
ofensivo, ninguém tem o direito de impedir a sua expressão, muito menos de violentamente
procurar suprimi-la ou de calar os autores. Num famoso acórdão (Falwell v
Flynt) do Supremo Tribunal dos Estados Unidos
sobre a liberdade de expressão em que em causa estava curiosamente uma
caricatura, a posição unanime dos juízes foi que “o facto da sociedade considerar ofensiva certo tipo de discurso ou de
expressão não é razão suficiente para suprimi-la”. Pelo contrário, por que
é opinião deve merecer “protecção
constitucional”.
As democracias acreditam que o bem comum e o
interesse público são atingidos na livre
troca de ideias porque como diz o Juiz Holmes o melhor teste da verdade é o poder de um pensamento de ser aceite em
competição com outros no mercado de ideias. É evidente que estas posições
já caldeadas nas democracias mais antigas ainda deparam com o cepticismo e
mesmo hostilidade de quem considera o unanimismo, a procura permanente de
consensos e os apelos patrioteiros como via de “ganhar tempo” e atingir rapidamente os objectivos. A realidade
histórica, porém, demonstra que quem realmente consegue atingir os objectivos
de paz, justiça e prosperidade são as democracias onde reina a liberdade e o
pluralismo.
A experiência cabo-verdiana no pós 13 de
Janeiro de 1991 também já deu provas do enorme potencial que pode advir de se
ter uma sociedade mais aberta, mais ligada ao mundo e em que todos,
esforçando-se por realizar as suas aspiração, contribuem para o progresso do
país. O impulso para a modernidade e para o desenvolvimento que se verificou
com a liberdade e a democracia não se compara com os tempos de unicidade de
pensamento e de acção do regime de partido único. Mesmo assim ainda se ouvem
vozes na sociedade a questionar o pluralismo, a deplorar a dinâmica
governo/oposição e a favorecer a propaganda estatal em detrimento da livre
troca de ideias no espaço público. Pressente-se que não desapareceu
completamente o condicionamento do espírito ganho outrora quando vigorou uma
linha do Partido – havia ouvidos atentos
onde menos se esperava para garantir o pensamento único e até se chegou a
criminalizar o “boato”.
Na comemoração de mais um aniversário do 13 de
Janeiro, Dia da Liberdade e da Democracia, é bom relembrar a importância
crucial da defesa da liberdade de expressão do pensamento e da liberdade de
imprensa para a vitalidade da sociedade no seu todo. Aproveita-se a
oportunidade para manifestar solidariedade para com as vítimas dos atentados de
Paris. Também é momento para reconhecer que um dos objectivos nos ataques à
liberdade de expressão é induzir autocensura na comunicação social. A
identificação do problema em Cabo Verde nos relatórios de várias organizações
internacionais sugere que persistem constrangimentos ao seu exercício. Os
ataques mais ou menos velados ao pluralismo, ao parlamentarismo e ao exercício
do contraditório devem cessar. Inibe-se a livre troca de ideias, afirmam-se
conveniências com prejuízo para a verdade e o factos e aumenta a intolerância,
a crispação política e a polarização social: tudo o que se quer evitar para se
ter liberdade, segurança e prosperidade.
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 14 de Janeiro de 2015
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