A perspectiva de aprovação de um novo estatuto
dos titulares dos órgãos de soberania tem sido nas últimas semanas matéria de
discussão e controvérsia em artigos de jornal, debates na rádio e televisão e
de conversas de café. Discutem-se essencialmente as regalias e a oportunidade
da iniciativa legislativa. Nota-se em várias tomadas de posição uma linha de
questionamento que parece pôr em causa o sistema político pluralista. Os
deputados e o Parlamento são os principais alvos. Curiosamente, os deputados da
oposição são os mais visados.
Sente-se em círculos mais mediáticos em Cabo
Verde um certo cansaço em relação à democracia, ao modelo de representação
política dos cidadãos e ao próprio pluralismo. Ouvem-se queixas de crispação
política, de bipartidarismo e da inutilidade do Parlamento. Reclama-se mais
consenso, menos exercício do contraditório e menos partido. Aparentemente esses
sintomas do que se podia chamar um
mal-estar democrático em Cabo Verde são similares aos notados nas
democracias avançadas, designadamente as europeias. Na realidade diferem porque
as causas, a cultura política subjacente e o contexto são outros.
Na Europa a crise de confiança nos políticos e
no sistema político ganhou expressão na gestão da crise que mostrou governos
nacionais quase impotentes, primeiro perante os mercados financeiros e depois
perante a Troika. Os cidadãos sob o impacto das medidas de austeridade não se
sentem devidamente representados nos parlamentos e olham com desconfiança para
as elites partidárias do “arco de governação” como cúmplices da banca e dos
burocratas da União Europeia em salvar um status
quo que favorece os poderosos em detrimento do homem comum. Mas ninguém na
Europa põe em causa a necessidade de responsabilizar o governo e de o forçar a
prestar contas. O descontentamento é com a falta de uma fiscalização efectiva
da governação pelo Parlamento mesmo nas situações que configuram cedência
excessiva da soberania nacional para as instituições comunitárias.
Em Cabo Verde é diferente. Muito do desencanto
com o Parlamento e das críticas ao sistema político e aos políticos vem da
percepção de conflitualidade ou crispação política entre o governo e as forças
da oposição. E é interessante notar que esse sentimento tende a favorecer o
governo e a ser mais hostil para com a oposição, tomada como conflituosa, não
colaborante e ávida do poder. Compreende-se em parte que assim seja se se
considerar que a democracia cabo-verdiana é jovem de quase 25 anos e ainda
procura libertar-se dos resquícios anti-pluralistas do salazarismo e do regime
de partido único.
A proposta de um novo estatuto para os
políticos trouxe outra vez à baila esse azedume contra o Parlamento e contra os
deputados. Podia-se pensar que a culpa é da conjuntura difícil em que a falta
de dinâmica económica, o desemprego e as fracas perspectivas no sector privado
focaliza ainda mais a atenção de todos nos recursos, acessos e favores do
Estado. Mas não, a reacção foi a mesma em 2006, no tempo das vacas gordas, quando
uma proposta do governo de aumento salarial encontrou resistência na sociedade
e acabou por ser inviabilizada no Parlamento pelo MpD.
A matéria de ajustamento salarial do
presidente da república, primeiro-ministro, ministros, deputados e juízes
parece despertar em muita gente o gosto pela demagogia barata. E nem se pode
dizer que por detrás disso há uma preocupação legítima quanto aos custos. Devia
ser evidente que a perda do poder de rendimento real desde o último ajustamento
de 1997 está de algum modo a ser compensada. Só que de uma forma não
transparente e eventualmente comprometedora da relação de equilíbrio entre os
diferentes órgãos de soberania.
O Governo que tem a responsabilidade directa
de gestão dos recursos do Estado sai reforçado nesse tipo de relações. Por
exemplo, pelo decreto-lei 8/2008 pôde unilateralmente melhorar de forma
significativa as condições de vida dos magistrados, dos membros do governo e de
outras entidades militares e policiais. Noutras leis estendeu benefícios na
compra de carros a certas categorias profissionais. Mesmo na administração
pública que não tem os salários indexados aos dos titulares dos órgãos de
soberania e tem beneficiado de ajustamentos periódicos, o governo pode recorrer
de contratos de gestão para altos funcionários com valores superiores ao
salário do presidente da república. Se considerarmos os salários praticados no
Estado em sentido lato, empresas públicas, agências reguladoras e institutos
públicos, os valores em causa são ainda muito maiores.
Enfraquecidos neste sistema fica o Parlamento
que fiscaliza o governo e o presidente da república que modera todo o sistema
político. Para a garantia de um poder judicial independente, um dos pilares
fundamentais do Estado de Direito democrático, não convém que a manutenção do
nível de rendimento e do bem-estar dos magistrados dependa só da iniciativa do
governo. Por tudo isso é fundamental que se restaure a transparência nos
salários da classe política por forma a que a actividade política seja
suficientemente atractiva para todos os que aspiram a servir na tarefa dura e
exigente de desenvolver Cabo Verde.
Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 18 de Março do 2015
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