sexta-feira, 12 de agosto de 2016

Autarquias e contrapoder

Sempre pelas eleições autárquicas surgem discursos que tendem focalizar o debate político na relação entre o Governo/Estado e os municípios. Há quem queira fazer das câmaras centros de contrapoder e há quem faça promessas de maior disponibilidade de recursos em caso de ser a mesma força política a suportar o governo e a câmara municipal. Ainda, de tempos em tempos, aparece quem tenha ambições mais paroquiais e se esforça por se apresentar como o salvador regional contra a opressão e o abandono do governo. Com tais discursos o pleito eleitoral é enviesado, questões mais importantes das comunidades passam para o segundo plano e marcas muitas vezes profundas são deixadas entre os protagonistas. Não é de admirar que, na sequência das eleições, o futuro das relações institucionais fique comprometido com custos significativos na eficácia global do Estado, com descoordenação nos serviços prestados à população e com impacto negativo no desenvolvimento futuro do município.
A experiência autárquica no Cabo Verde independente faz 25 anos no final de 2016. Vai-se iniciar o sétimo ciclo de eleições dos órgãos municipais e seria da maior importância que as “doenças infantis” do processo de consolidação do Poder Local ficassem para trás. Não há ganho algum em continuar com as lutas de protagonismo entre os governos e os municípios. Funcionam em planos diferentes e têm níveis de competências e de responsabilidade diferentes que não os devia fazer rivais mas sim cooperantes na consecução do interesse público. Também não ajudam os pronunciamentos às vezes cáusticos de autarcas a clamar contra o abandono, a discriminação e humilhação a que os seus municípios sofrem nas mãos do Estado. Só servem para reproduzir a mentalidade de vítima que ao gerar ciclos alternados de indignação e frustração nas pessoas não lhes deixa energia para procurar saídas além daquela de culpar outros pelos seus males.
Infelizmente deixar de trilhar o caminho que já levou muitos ao poder e os ajudou a manterem-se lá mandatos seguidos não é fácil. Todos querem ganhar e o caminho mais fácil para isso é o de mobilizar paixões, agitar bandeiras identitárias e mostrar indignação. O problema com estas tácticas é que, além de desviar dos problemas locais invariavelmente, acabam por deixar todos pior do que no ponto de partida. Abrem caminho para caciquismos, culto de personalidade, bairrismos e políticas populistas e demagógicas que desperdiçam recursos e não capacitam para reconhecer nem para aproveitar oportunidades. Também há quem procure atrair eleitores para o seu campo em nome de se evitar a hegemonia do partido no governo. Compreende-se que quem tenha perdido eleições nacionais procure com vitórias noutras eleições demonstrar que continua a ser um grande partido. É um facto que os eleitores em meio de uma legislatura queiram demonstrar desagrado com a maioria no governo votando nos partidos da oposição. Mas fazer dessas constatações motivo para erigir as câmaras municipais em contrapoder em relação ao governo é excessivo e as consequências gravosas.
A luta política em Cabo Verde às vezes parece uma guerra sem quartel porque não se reconhecem como distintos os diferentes níveis do exercício de poder e os seus respectivos espaços de actuação e mecanismos de fiscalização política. No Parlamento perdem-se horas a discutir questões que melhor enquadramento teriam no debate nas diferentes assembleias municipais do país. Em várias ocasiões o governo e sua maioria parlamentar respondem a interpelações da oposição referindo-se a posicionamentos e actos de presidentes de câmara de cor política diferente. Nos municípios que o partido no governo é minoritário há a tentação de se criar estruturas paralelas, designadamente organizações comunitárias munidas de recursos dados directamente pelo Estado e incumbidas de realização de tarefas de natureza municipal. Em ambiente de crispação as estruturas desconcentradas do Estado não desenvolvem as melhores relações com as estruturas municipais e tendem a piorar porque é notório como certos funcionários em pontos- chave da vida do concelho, designadamente delegados de serviços desconcentrados tornam-se em activistas partidários dos mais frenéticos. No processo é evidente que a eficácia da actuação dos poderes públicos sofre grandemente com toda a descoordenação e a má vontade que é gerada.
Há que normalizar tudo isto e abrir uma nova fase de maior eficiência e eficácia na actuação dos poderes públicos mas de também de menor crispação. Cabo Verde tem 22 municípios. A lógica que está por detrás da criação dos municípios, da eleição dos seus órgãos e da garantia da sua autonomia administrativa é o reconhecimento que, como dizem os entendidos, os interesses das comunidades são específicos e diferenciados dos de outras comunidades locais e dos da colectividade nacional global. Também a Constituição consagra o Poder Local como um dos pilares do Estado de Direito democrático e o respeito pela autonomia das autarquias como um princípio basilar que nem pode ser matéria de revisão constitucional. Daí que se pode concluir que é de maior importância que todos os actores políticos respeitem os diferentes e diferenciados espaços de actuação política de forma a optimizar a actuação de cada um e garantir a complementaridade e solidariedade que entre si o sistema pressupõe e propugna para que o interesse público nacional e local seja plenamente realizado.

Texto originalmente publicado na edição impressa do  nº 767 de 10 de Agosto de 2016.

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