sexta-feira, 5 de agosto de 2016

Nada para debaixo do tapete

Nos últimos dias tornaram-se conhecidos os resultados dos inquéritos feitos a dois acontecimentos trágicos que abalaram a sociedade cabo-verdiana: O afundamento do navio Vicente e o massacre do Monte Tchota. Praticamente ficou-se na mesma. Para o Ministério Público o único culpado pelo acidente do “Vicente” foi o capitão do navio e como se encontra entre os mortos dá-se por concluído o inquérito. Para as Forças Armadas, o responsável pelo massacre que se saldou em oito mortos militares e três civis agiu por razões pessoais e será julgado no devido tempo. O comunicado das FA acrescenta ainda que será instaurado um processo disciplinar a um militar não identificado por “incumprimento de deveres militares”.  
A reacção geral perante essas declarações tem sido de incredibilidade. Sente-se que mesmo quando se trata de situações extremas e trágicas não se consegue conhecer o que realmente aconteceu, quem são os responsáveis e que lições se pode retirar do caso para se evitar repetições no futuro. O caso do Monte Tchota é paradigmático.
Cinco dias depois do massacre, o Chefe de Estado Maior das Forças Armadas demitiu-se e a sua demissão foi aceite pelo Presidente da República. Depreendeu-se do acto a gravidade do que se tinha passado e a necessidade de mudanças na instituição militar para evitar que a sua credibilidade, em termos operacionais e como força dissuasora de eventuais ameaças à soberania e à sua própria integridade, seja posta em causa. Mas pelo comunicado das FA divulgado, fica-se a saber que afinal  que “o moral e o nível de disciplina dos efectivos destacados para Monte Tchota são aceitáveis”. Também que em relação a “alegados maus-tratos” existe uma preocupação em cumprir as normas existentes. E quanto ao “uso de álcool e outros estupefacientes” são casos esporádicos. Por todas essas conclusões quase inócuas do inquérito e que não tocam na instituição é de se perguntar porque o então Chefe de Estado Maior teve necessidade de pedir a sua demissão.
Demasiadas vezes fica-se com a impressão que há uma tendência generalizada em fazer a sociedade cabo-verdiana caminhar algures entre um país ficcionado e o país real. E todas as vezes que alguma informação ou acontecimento lança as pessoas em direcção aos factos e para além das ilusões sistematicamente criadas e recriadas ou se faz tudo para os ignorar ou aparece uma diversão, um “sideshow”, que não deixa que a aproximação da realidade se concretize. Se nos casos referidos do Monte Tchota e do afundamento do navio Vicente tudo parece confluir para dizer que nada de fundamental se passou ou precisa ser mudado, já no debate sobre o estado da Nação do dia 29 de Julho o expediente foi vitimização para polarizar paixões.
O primeiro estado da Nação a verificar-se depois das eleições legislativas e já com um novo governo podia ter sido o momento ideal para se conhecer a situação actual do país e em sede do contraditório definir os contornos dos problemas existentes e pôr a teste as visões do governo e das outras forças políticas. Infelizmente o que se viu e se ouviu foi um exercício de descredibilização do Parlamento e o toque de clarim para cada partido meter-se na sua trincheira política. Comprometeu-se logo o diálogo político que o país tanto precisa neste momento de encruzilhada no seu desenvolvimento. É interessante contatar que as posições dos diferentes partidos durante o período eleitoral pareciam em várias matérias convergirem em relação a diagnóstico e a soluções. Até houve acusações de plágio mas parece que tudo foi esquecido. Prefere-se voltar ao antagonismo habitual em que se discutem governos de décadas diferentes ao mesmo tempo que se deixa o país num mundo virtual enquanto os problemas continuam a ser varridos para debaixo do tapete.
O facto é que são varridos mas não desaparecem. Particularmente agora que amortecedores externos em termos de ajuda internacional diminuem e as iniciativas económicas internas precisam de mais do que um bom começo, ignorá-los, falseá-los ou adiá-los indefinidamente traz consequências cada vez mais gravosas. As eleições de 20 de Março foram para colocar Cabo Verde num outro caminho que lhe permita ultrapassar a estagnação económica, recuperar o tempo perdido e crescer suficientemente para manter em bases sólidas a esperança de todos no futuro. Para isso porém há que começar por ter os pés bem firmes na realidade actual do país e do mundo com quem interagimos na procura das melhores vias para o sucesso e prosperidade.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do  nº 766 de 03 de Agosto de 2016.

Sem comentários:

Enviar um comentário