sexta-feira, 30 de junho de 2017

Défice de diálogo democrático

Como já foi bastas vezes dita, o debate é a essência da democracia. Pressupõe liberdade de expressão, conta com o pluralismo de pontos de vista e exige respeito pelas regras do jogo democrático cingindo-se aos factos e à verdade. A fragilidade do debate em Cabo Verde, infelizmente não por poucas vezes despida de objectividade, de fair play e de substância, acaba por indiciar que há ainda muito a caminhar para se poder afirmar com propriedade que a democracia em Cabo Verde está em terreno sólido. Os debates parlamentares pela sua propensão em se desviar do objecto, em resvalar para ataques ad hominem e em se constituir vias para se mobilizar apoios de sectores do eleitorado mesmo quando as eleições estão distantes são paradigmáticos do que sempre se deve evitar em democracia. Em geral, termina sem um esclarecimento sobre as matérias em discussão, sem qualquer base de trabalho conjunto, e sem, de facto, um engajamento em questões muitas vezes prementes do país. 
O último debate parlamentar sobre o agronegócio não foi excepção. Aliás, sobre o próprio conceito de agronegócio não há qualquer consenso. Foi introduzido na última década como a actividade que iria justificar a mobilização monumental da água através de barragens e na sequência criar muitos postos de trabalho, aumentar o rendimento da população rural e fornecer produtos para o turismo em dinâmica crescente no país. Iludiu-se o facto que noutras paragens o agronegócio para ter escala e poder adoptar tecnologias e processos mais produtivos concentra propriedade e liberta população para as cidades e outros sectores da economia. Mesmo quando a realidade da persistência da pobreza nas zonas rurais, com o interior de Santiago a ter o mais baixo rendimento per capita do país, e com a generalidade das ilhas agrícolas a perder população, ficou difícil, em sede de debate parlamentar, reconhecer a necessidade de ruptura com as políticas do passado.
Em competição uns com os outros, os partidos continuam a prometer levar todas as infraestruturas e todos os serviços a todos os pontos do território, sejam elas cidades, vilas e povoados ou simples lugarejos. Não se vislumbra é a concomitante preocupação de saber se já há ou se é possível construir uma economia que dê às pessoas de forma sustentável recursos para aí viverem, pagarem energia, água e telecomunicação, fazerem a manutenção da casa e acederem à educação e à saúde sem subsídios estatais de uma forma ou outra. O resultado é que, na ausência de uma estratégia de promoção de uma economia que não a tradicional, a actuação do Estado tem sido a utilização de doações ou capital concessionado para fazer obras muitas vezes com prioridades questionáveis, mas sempre proclamando que trarão melhorias significativas. Entretanto o país endivida-se, a pobreza e o êxito rural para as periferias das cidades persistem, mas a resposta parece que não é outra senão a de anunciar ainda mais projectos. Espantoso que o nem com o grogue, um produto não perecível e com mercado real e potencial expressivo, consegue-se efectivamente regular a sua produção, estabelecer os seus circuitos de distribuição e garantir a sua qualidade. 
Hoje sabe-se que é fundamental para que a democracia funcione em pleno que os seus actores se sintam guiados pelo princípio de responsabilidade incluindo a preocupação com a integridade do sistema político e a sua conservação e sobrevivência mesmo perante a crise. Também é essencial que se deixem guiar pelo princípio de convicção que obriga a coerência e consistência nas posições que se confrontam na esfera pública. Perigos para as democracias existem quando são ignorados esses princípios e substituídos por actuações polarizantes da sociedade designadamente com base em nacionalismos exacerbados, sentimentos contra imigrantes e frustrações com o aumento das desigualdades e com o distanciamento das elites. Sempre que assim acontece corre-se o risco de esvaziar a democracia da sua natureza inclusiva, propiciando a divisão entre nós e eles e, em vez do diálogo, esgrimem-se paixões, medos e ressentimentos. Também sacrifica-se o diálogo quando se vai no sentido de praticamente substituir discursos alternativos por uma pretensa verdade tecnocrática que se autoproclama como solução única e científica para os complexos problemas da política e da vida em sociedade. 
O défice de diálogo entre as forças políticas em Cabo Verde tem sido prejudicial ao país em vários momentos nestes 26 anos de regime democrático. Muitas reformas profundas e reorientações atempadas poderiam ter sido conseguidas se em matérias cruciais se tivesse chegado a compromissos salvaguardando os interesses de ambas das partes. As últimas eleições legislativas bem poderiam ter aberto um outro período na relação partido no governo e oposição. A consciência de que o país se encontrava numa encruzilhada parecia ser partilhada por todos e podia-se ter aberto caminho mais cedo. Infelizmente rapidamente o país voltou aos hábitos políticos anteriores mas agora com um potencial de perturbações porque tudo leva a crer que o foco da actividade reivindicativa vai ser a administração pública e o sector empresarial do estado e, sem crescimento expressivo, não há muita margem para uma resposta positiva.
O futuro de Cabo Verde irá depender muito da capacidade do governo e de outras forças políticas chegarem a acordo em matéria do futuro do país e de garantir a paz social. Questões como a Segurança, a reforma da administração pública, a pobreza em geral, mas particularmente no mundo rural, a reforma do ensino, reforma laboral e uma estratégia para o Turismo deviam merecer um diálogo mais construtivo com participação efectiva de todos. Há que fazer mais para isso com carácter da urgência do agora.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 813 de 28 de Junho de 2017

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