sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Privatizações na ordem do dia

O Governo, de repente, resolveu pôr as privatizações na ordem do dia. Aprovou uma resolução que estabelece que 23 empresas públicas ou participadas pelo Estado serão privatizadas ou cedidas em forma de concessão. Os objectivos, segundo a resolução, são o “empoderamento do sector privado nacional e estrangeiro”, a consolidação da economia e a criação de oportunidades em sectores-chave da economia. Estima-se na resolução que o possível encaixe das operações de venda seja de 10 milhões de contos apesar de, como diz o ministro das Finanças, o governo não estar à procura de receitas extraordinárias para confrontar o duplo problema do défice orçamental e da dívida pública. Como era previsível, as reacções das forças políticas e da sociedade não tardaram a aparecer ao que imediatamente se caracterizou como o segundo surto de privatizações depois do primeiro, que o MpD tinha protagonizado, na década de noventa.
Infelizmente, muitos processos em Cabo Verde, como o da privatização de empresas públicas nos anos 90, nunca são fechados nem beneficiam do olhar em retrospectiva que poderia justificá-los ou no mínimo contextualizá-los para melhor os compreender e retirar lições com vista à acção futura. Ficam cativos de narrativas que depois vão alimentar o arsenal dos partidos políticos nos seus confrontos e evitam que se avance na compreensão dos problemas do país e na construção da vontade colectiva para vencer os extraordinários desafios que se colocam. As privatizações nos anos noventa aconteceram em simultâneo com processos similares em vários outros países. Foi o momento histórico do abandono da economia estatizada para economia de mercado e por uma razão simples: além de serem apanágio de regimes autoritários e totalitários há muito que tinham levado à estagnação económica contrastando com a dinâmica das economias de mercado nos países livres e democráticos. Em Cabo Verde há quem fique colado a slogans de campanha do tipo “venda da terra” e perde de vista como, com a restruturação da economia nos anos 90, se elevou o potencial económico e o país cresceu a ponto de hoje o rendimento per capita se situar em 3000 dólares enquanto em 1990 não passava dos 898 dólares. 
Como em vários outros países que fizeram a transição para a economia de mercado, as privatizações inicialmente foram fundamentais para se desenvolver o sistema financeiro, para modernizar sectores-chave como telecomunicações, energia e água, transportes marítimos e aéreos e criar condições para a emergência de uma classe empresarial nacional capaz de se engrenar em cadeias de valor suportadas pelo investimento directo estrangeiro e voltadas para a satisfação da procura externa de bens e serviços. Depois dessa primeira fase estruturante, privatizações em geral acontecem para diminuir riscos fiscais de empresas públicas deficitárias, conseguir receitas extraordinárias quando em processo de consolidação orçamental ou para estrategicamente se conseguir ganhos de eficiência que beneficiem o conjunto da economia nacional. Em todos os casos é evidente que há resistências e as opções do governo podem não reunir consenso geral. A verdade é que particularmente para casos como o nosso de desemprego estrutural e de dinâmica económica muito aquém do necessário para o país prosperar há que tudo fazer para que a economia seja mais eficiente, mais produtiva e mais competitiva.
A questão do papel do Estado na economia nacional deve porém ser discutida com a devida profundidade. Nem o sector privado pode substituir o Estado em todas as situações nem os mecanismos do mercado conseguem resolver todos os problemas a contente dos consumidores, utentes e clientes no que respeita a preços e qualidade. De facto, há situações de mercado imperfeito e/ou de falha de mercado que exigem intervenção do Estado para suprir deficiências ou preencher eventuais vazios. A posição nestas matérias não deve ser ideológica, mas sim realista e pragmática. Aliás, realismo e pragmatismo e um elevado senso de oportunidade e timing devem presidir a actuação do Estado num país como Cabo Verde de diminuta população, mercado fragmentado, deficiência de transportes e relativamente remoto em relação aos grandes mercados globais. Agindo de outra forma, continua-se simplesmente a acumular perdas nos muitos take offs, novas largadas e novos paradigmas que os sucessivos governos insistem em proclamar, mas que acabam por revelar-se mais como ilusionismo do que algo concreto e sustentável.
A partir daí não tarda muito que a factura acabe por mostrar-se numa dívida pública pesada, de  difícil sustentabilidade e que deixa o país sujeito aos rigores de eventuais ajustamentos estruturais. Na última reunião do GAO os parceiros vieram lembrar que a dependência da ajuda externa tem custos. Os parceiros com o Banco Mundial à frente declararam que não avançam com ajuda orçamental enquanto a situação da TACV não fosse completamente resolvida. Não consideraram suficiente a resolução com a entrega à Binter do serviço doméstico da TACV e querem também que se privatize a TACV internacional para depois decidir a retoma da ajuda orçamental. Na semana passada, em sede de comissão de inquérito parlamentar ficaram explícitos os custos da iniciativa que, em 2010, juntou o programa Casa para Todos ao projecto do Novo Banco nas vésperas das legislativas. Provavelmente terá trazido vantagens eleitorais ao então governo mas são os outros que inevitavelmente vão ter que pagar, de uma maneira ou outra as consequências de iniciativa.
Liberalização económica, privatizações e facilidades de crédito são muitas vezes utilizadas para se soltar energias, ambições e vontade de sucesso no sentido de se construir no país uma máquina poderosa de criação de riqueza a médio e longo prazo. Na consecução desses objectivos, esses instrumentos não são porém suficientes. Várias acções, designadamente de acesso aos mercados, de política virada para a exportação, de melhoria dos sinais de contexto e de criação de competências académicas na população juvenil têm de ser tomadas para se ter sucesso. A grande tarefa é aperceber-se que não têm todos o mesmo impacto e o potencial efeito de cada um só se revela no momento certo quando devidamente encadeado e maximizado.  

Texto originalmente publicado na edição impressa do EXPRESSO DAS ILHAS nº 819 de 9 de Agosto de 2016. 

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