quarta-feira, 26 de junho de 2013

Sacudir o conformismo



O espectáculo de centenas de milhares de pessoas a protestar nas ruas das cidades brasileiras tem sido seguido com muita atenção e curiosidade em todo o mundo. Chovem análises quanto ao que estará por trás da insatisfação demonstrada e o que deverá vir a seguir. Fazem-se comparações com as manifestações da Primavera Árabe e com os tumultos verificados recentemente na Turquia. Muitos apontam o carácter espontâneo dessas movimentações, designadamente o facto de não apresentarem liderança explícita, de se materializarem graças às redes sociais (Twitter, Facebook, etc.) e de terem sido desencadeadas por actos quase fortuitos ou inesperados como imolação do vendedor de frutas em Túnis, um projecto de um shopping num parque público em Istambul e aumentos de dez centavos no bilhete de autocarro em São Paulo. Todos parecem estar de acordo que elas traduzem o sentimento de muitos milhões por todo o mundo que vêem nas suas expectativas de prosperidade futura colapsaram sob o impacto de mudanças profundas no panorama económico mundial.


Na Europa, a crise do euro já produzira os seus indignados que da Grécia à Espanha e a Portugal e também por todo o continente protestaram contra os governos nacionais que se subordinam às exigências dos mercados de capitais, enquanto sacrificam o crescimento e o emprego no processo. Nos Estados Unidos também o movimento Occupy Wall Street se bateu contra o maior aumento em desigualdade social em quase cem anos derivado da concentração excessiva de riqueza, de menor mobilidade social e de mudanças na estrutura económica do país que favorecem trabalho precário e mal pago no sector de serviços em detrimentos dos outrora empregos bem pagos na manufactura.


Um pouco por todo o mundo fazem-se sentir alterações na dinâmica da globalização motivadas por inovações tecnológicas e mudanças na cadeia de valor internacional. Para economistas como Dani Rodrik, Tyler Cowen e Paul Krugman isso pode significar maior desemprego permanente nos países desenvolvidos e impossibilidade dos países emergentes de repetir as taxas elevadas de crescimento do passado recente. A percepção do facto que a sonhada prosperidade e mobilidade social não virá tão depressa, poderá estar por detrás da revolta da classe média emergente e dos jovens nesses países.


Em Cabo Verde, não há contestação digna desse nome, muito menos revolta. A empresa de ratings Standard&Poors na sexta-feira, dia 21, pôde baixar o “Outlook” de Cabo Verde de estável para negativo e justificar dizendo que défices elevados e o peso da dívida pública enfraqueceram o país e deixou-lhe mais exposto a choques externos. Não há reacção. O facto de, perante uma provável recessão de 2013 como prevê o Banco de Cabo Verde, o governo não se desviar um milímetro dos seus métodos passados, não espanta a ninguém. Nem o facto de, numa época em que universalmente se condena construções de infraestruturas caras, sem ligação óbvia com a exploração das vantagens comparativas e marcadas por razões partidárias, o governo insistir em brandir como sucesso obras feitas com recurso à dívida externa que já atinge os 73% do PIB. No Parlamento a postura beligerante não deixa que a Nação seja esclarecida quanto a eventuais mudanças de rumo na governação a que normalmente quebras graves no crescimento e forte aumento de desemprego obrigam. Só é brindada com anúncios de sucessos futuros no âmbito de clusters ainda por se constituírem.


O conformismo que parece dominar a sociedade cabo-verdiana talvez explique por que aumentos na energia, água e transportes; quebras na dinâmica em todos os sectores (até as receitas do turismo estão a desacelerar segundo o BCV) e desemprego de milhares de jovens com secundário completo e licenciatura não levam as pessoas a exigir veementemente do governo soluções. Herdada ou criada nos circunstancialismos em que se exerceu o poder em Cabo Verde, a verdade é que o conformismo pode ser um sério entrave à consolidação democrática. Não é à toa que são considerados benéficos para a democracia acontecimentos como os do Brasil ou da Turquia. Ganha-se quando há engajamento da sociedade no seu todo, exigindo do governo responsabilização, reformas e respostas de curto prazo. Cortam-se assim vícios de governação como o autismo e a arrogância que tendem a se acumular com o passar de anos de poder. Também o activismo cívico ajuda a fortalecer as instituições ao obrigar a prestação de contas e ao forçar um combate permanente contra a corrupção.


O partido comunista chinês sabe que para se legitimar no poder na China tem que fazer o país crescer pelo menos 8% ao ano. É o mínimo que lhe exige a população que quer sair da pobreza e ascender à classe média a exemplo do que já fizeram centenas de milhões de pessoas nas últimas décadas. Trabalhar para a prosperidade crescente do país e das pessoas é tarefa fundamental de qualquer governo, mormente o governo democrático. Estranham-se pois os ares de satisfação de um governo que depois de prometer crescimento a dois dígitos pode possivelmente estar a presidir anos de crescimento abaixo de um dígito. A legitimidade dos governos não é só formal, não deriva somente das eleições periódicas. Realiza-se também na capacidade de respeitar e ouvir os outros e ir ao encontro aos interesses nacionais. Como escreve a revista Economist na sua última edição, há que evitar o aparecimento da democracia zumbi: Aquela que tem aparência de coisa real, mas falta-lhe o espírito.

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 26 de Junho de 2013

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