quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Espectro do passado que não passou



Como tratar o passado ainda fresco na memória colectiva de regimes autoritários e totalitários é um dos maiores desafios com que se defrontam as sociedades quando dão os primeiros passos na construção da democracia. A procura de um futuro de liberdade e prosperidade irá implicar que a sociedade no seu todo se mova para além do seu passado, sem carregar o lastro, mas também sem cair na tentação fatal do acerto de contas. A história mostra que se consegue fazer isso com justiça e com equilíbrio se o passado não for tratado de forma despiciente ou simplesmente ignorado. Nelson Mandela, na sua luta pela Liberdade, igualdade e democracia na Africa do Sul, por várias vezes deixou claro que a reconciliação nacional só se verificaria se o passado fosse confrontado com a verdade. A criação da Comissão de Verdade e Reconciliação presidida por Desmond Tutu significou que podia haver perdão para os perpetradores de abusos, mas nunca esquecimento de factos históricos devidamente estabelecidos por mais horríveis ou trágicos que tivessem sido.


Em Cabo Verde todos os anos por altura do feriado nacional de 13 de Janeiro, Dia da Liberdade e de Democracia, opera-se uma espécie de esquizofrenia nacional em que são protagonistas os principais órgãos de soberania. A Assembleia Nacional onde estão os representantes de todo o povo recusa-se a celebrar o feriado nacional que ela própria instituiu em forma de Lei. A Presidência da República, outrora completamente omissa, passou desde da eleição do Dr. Jorge Carlos Fonseca a marcar o 13 de Janeiro com actos oficiais e mensagens do presidente. O governo, em regra, organiza eventos díspares, mas sem a dignidade de uma comemoração de Estado. Sem cerimónias oficiais, os partidos políticos informalmente desdobram-se em actividades que em muitos casos simplesmente reeditam a guerrilha à volta da interpretação do processo da mudança do regime. Este ano o Sr. Primeiro-ministro, como que a acordar de um longo sono, veio dizer que é preciso “dar mais dignidade” ao 13 de Janeiro. Aparentemente não se lembrou de influenciar a maioria que o seu partido detém na Assembleia Nacional no sentido de se acabar com o bloqueio na realização da sessão solene que é tradição nos parlamentos democráticos, designadamente em Portugal e Espanha quando se celebra a liberdade, o pluralismo, a democracia e a Constituição.


A oposição à celebração condigna e de Estado do 13 de Janeiro usa a proximidade do aniversário do assassinato de Amilcar Cabral, 20 Janeiro, também feriado nacional, para diminuir ainda mais o 13 de Janeiro. Este ano, logo no dia 14, o Ministério de Educação iniciou uma semana Amilcar Cabral em todos os estabelecimentos do país numa acção que relembra os actos de doutrinação de crianças e jovens do antigamente. O ministério finge ignorar que a Constituição explicitamente proíbe o Estado de impor nas escolas “directrizes filosóficas, estéticas, políticas, ideológicas ou religiosas” (alínea c do artigo 50º). Por outro lado, não acata a recomendação da Constituição. nº 2 f) art. 78, quanto à promoção dos valores da democracia, valores esses nas antípodas dos presentes no pensamento de Amilcar Cabral que reconhecidamente é de extracto marxista-leninista.


Todos os anos cria-se um imbróglio na celebração dos feriados de Janeiro. Este ano não é diferente, apesar dos esforços do actual presidente da república com a sua mensagem no 13 de Janeiro e a deposição de flores no monumento aos heróis nacionais no dia 20 de Janeiro, entre outros actos, em fazer das datas, dias de concórdia nacional. Com a crispação que paira no ar, fica-se com a impressão de que não só o passado não passou como procura impôr-se no presente e já com um olho no futuro.


Pelo gesto do presidente da república, vê-se não há qualquer repúdio em homenagear os heróis da independência. A crispação resulta do não reconhecimento do simbolismo do 13 de Janeiro enquanto momento da afirmação da liberdade e da vontade soberana do povo. Há quem tenha estado associado à ditadura do partido único que acha que deve reclamar para si a glória da democracia, porque iniciou a abertura política. Esquece que se foi necessário uma abertura em 1990 é porque alguém fechou as portas à liberdade 15 anos antes.


O absurdo da situação reside aí. Não faz sentido exigir à vítima que agradeça o seu algoz pela sua libertação. Não se pode ter um país inteiro com uma espécie de síndrome de Estocolmo em que todos vêem a necessidade histórica do partido único, ficam gratos pelo facto do regime ditatorial ter sido “suave” e congratulam-se por, ao atingir a “maioridade”, terem recebido a democracia como presente. Para que não se continue na via que pode pôr em perigo o futuro, é fundamental que a sociedade consiga, sem quaisquer receios, ver com verdade o que realmente aconteceu nos anos de partido único e levar os seus protagonistas a assumir a sua responsabilidade plena.

Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 15 de Janeiro de 2014

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