terça-feira, 26 de outubro de 2010

Justiça: ao sabor das conveniências

A revisão constitucional de Novembro de 1999 introduziu mudanças transformacionais na Justiça. Criou o Tribunal Constitucional (TC) e determinou que o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça (STJ) fosse por concurso público. Passados dez anos ainda está por ser instalado o TC e por aprovar a lei que define o novo regime de acesso ao tribunal superior judicial. O STJ, agora com sete membros, tem três juízes nomeados por órgãos de poder político. E tudo indica que assim vai-se manter por mais três anos. Pode-se concluir que, no que respeita ao cumprimento do comando constitucional, esta década foi uma década perdida para justiça. Isso não significa que nada se fez no sector. Nem podia ser, visto que fundos públicos foram canalizados para modernizar as estruturas da justiça e promover a formação dos agentes. A cooperação internacional continua activa e é visível nos investimentos feitos no combate à criminalidade organizada e ao narcotráfico. E o processo de adequação da legislação á Constituição ao nível penal e de processo penal foi terminado e aprovados os respectivos códigos. Um novo código civil está em processo de adopção e preparado para entrar em vigor no próximo ano Não obstante todos esses desenvolvimentos, é consenso geral que a justiça não atingiu os resultados desejados. A morosidade na administração da Justiça configura para muitos simples denegação da Justiça. E consequências disso fazem-se sentir ao nível de defesa de direitos, individuais, proprietários e contratuais, na competitividade do país e na manutenção da harmonia e coesão social. Num outro aspecto em que não se conseguiu cumprir os desígnios constitucionais foi em terminar com as nomeações políticas dos juízes com vista ao aprofundamento da independência dos tribunais. A acção do Governo e da maioria, que o suporta, durante toda esta década, tem sido marcada por bloqueios, fugas em frente e golpes de força. Em 2003 e 2008 podia-se ter adequado as estruturas do poder judicial à revisão constitucional de 1999. Nos dois casos o PAICV manobrou e conseguiu que juízes do STJ fossem nomeados por políticos. O pacote de leis da Justiça, apresentado em Outubro de 2008, vinha com a intenção de manter indefinidamente a nomeação de um juiz do STJ pelo Presidente da República. A necessidade de se fazer uma revisão constitucional antes de avançar com essas leis não foi aceite pelo Governo até ter sido forçada pelo MpD. Felizmente, hoje, todos reconhecem a justeza da via seguida. Obstáculos no caminho de um poder judicial independente e autónomo não desapareceram apesar do acordo chegado pelos partidos, em sede de revisão. Na sessão da Assembleia Nacional de Outubro vai ser discutido o pacote de Justiça, mas como bem chamou a atenção o Bastonário da Ordem dos Advogados, faltam “o estatuto do Conselho Superior de Magistratura Judicial, a lei da Autonomia Administrativa e Financeira dos Tribunais e a li das Inspecções Judiciais”. Precisamente, as leis que marcadamente traduzem as alterações feitas na Constituição sobre a independência e autonomia do Poder judicial e que todos, incluindo o Governo, dizem aclamar. O Sr. Presidente da República, na cerimónia do início do novo ano judicial, apelou aos deputados que aprovassem o actual pacote de leis. Esqueceu-se talvez de chamar a atenção dos legisladores para o dever de cumprimento pleno da Constituição, o que obriga a considerar prioridades legislativas na estruturação do novo sistema. E este não é o primeiro caso. Já no domínio da comunicação social viu-se como o Governo e a sua maioria parlamentar ignoraram a criação da Autoridade Independente na revisão constitucional e impuseram novas leis. Na Justiça também parece que não priorizam o enquadramento legal das novas competências do Conselho Superior de Magistratura e a materialização d autonomia administrativa e financeira dos tribunais. As muitas transferências feitas nas secretarias judicias também sugerem acções do Governo em antecipação da passagem da gestão do pessoal administrativo dos tribunais para o CSM. São acções que não abonam da boa fé do Governo e que mostram que tem havido muita distância entre o que se diz e o que se faz em matéria de Justiça. O núcleo de serviços internos do Supremo Tribunal de Justiça, essenciais para a produtividade e qualidade do trabalho do STJ, depois de criados em 2005 só 4 anos depois foram dotados de verbas. Diz-se que se quer fazer e sonegam-se os meios ou age-se para esvaziar de conteúdo o acordado. Por tudo o que foi dito comprova-se que na luta por uma Justiça célere, de qualidade e livre de interferências políticas, esta década foi uma década perdida. O edifício judicial novo só vai poder ser construído a partir do próximo ano, e isso se até lá as outras leis estruturantes forem discutidas e aprovadas. Os Tribunais de Relação vão ter que esperar mais três anos e STJ só vai ter juízes sem o fardo da nomeação política também daqui a três anos. O Governo investiu na Justiça. Mas as suas conveniências políticas impediram-no de o transformar. Os resultados estão aí para todos verem. E dez anos foram perdidos.

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