sexta-feira, 25 de março de 2011

Não há mais tempo a perder

O novo governo tomou posse perante o Presidente da República no dia 21 de Março. É o início de um terceiro mandato que tudo leva a crer vai ser um mandato difícil. A situação económica e política internacional continua instável, de contornos pouco claros e imprevisível quanto à sua evolução futura. E Cabo Verde, a partir de 2013, vai ter de confrontar-se com maiores exigências no acesso a financiamentos concessionais e a mercados preferenciais derivadas da graduação a país de rendimento médio.

A crise internacional em Setembro de 2008 encontrou o País com uma economia pouco diversificada e cada vez mais dependente do turismo. Nos anos da euforia pré-crise verificara-se um surto de investimento directo estrangeiro dirigido fundamentalmente para o sector do turismo e da imobiliária turística. Em consequência, Cabo Verde cresceu mas não o suficiente para criar o número de empregos necessários. Com a crise, a situação social degradou-se. A perda de postos de trabalho na construção civil e nos serviços ligados à actividade turística não foram contrabalançados por emprego criado directa ou indirectamente pelas obras de infra-estruturação feitas com recurso a linhas de crédito estrangeiras.

Na avaliação da competitividade de Cabo Verde pelo Forúm Económico Mundial (117º lugar em 139 países) ficaram evidentes os constrangimentos que ainda se colocam à economia, retirando-lhe eficiência e mantendo baixa a produtividade. Esses constrangimentos mostram-se ainda nos resultados aquém dos desejados conseguidos das apostas do Governo em fazer de Cabo Verde uma praça financeira internacional, um hub aeroportuário e um centro para o transhipment e ainda uma cyber island. O facto das metas propostas pelo Governo para o crescimento do PIB e para o desemprego não terem sido atingidas, mesmo considerando a crise, apontam para sérias dificuldades em lidar com a economia real.

Diferentemente do que aconteceu na generalidade dos países, em Cabo Verde, a crise não foi motivo de grande reflexão e preocupação mesmo quando de crise financeira passou a crise económica e depois a crise social com desemprego generalizado. Hoje é crise da dívida soberana afectando os principais parceiros de desenvolvimento. Apesar disso o País, protegido segundo o Governo por blindagem segura, como que ficou acima, pairando sobre dificuldades que só pareciam atingir os outros. O período eleitoral serviu para camuflar a situação, em vez de ser razão para uma discussão aprofundada e séria de como o País se devia preparar para o pós-crise.

Muitos esforçaram por dizer que não havia necessidade de arrepiar caminho e de ter uma outra atitude em relação ao desenvolvimento. Insistiu-se em manter o rumo e a ideia passou. Hoje, já depois das eleições, é o próprio Primeiro-Ministro que vem informar o país que se vive “tempos de grandes incertezas e de grandes riscos”. E que “a crise vai perdurar” e “a subida dos preços dos combustíveis e dos produtos alimentares vem agravar esse quadro”. Mas os sinais enviados na apresentação da estrutura do Governo e nas nomeações feitas em sectores chaves como a economia e o desenvolvimento do capital humano não auguram mudanças significativas. E sem uma nova abordagem dificilmente poder-se-á enfrentar com sucesso os desafios actuais.

Passado o período da polarização eleitoral, os caboverdianos esperam que o governo assuma que tem um mandato de cinco anos para colocar o país numa base sólida de crescimento com mais emprego, mais rendimento e mais qualidade de vida. E que não deve condicionar a sua agenda às outras eleições e desperdiçar tempo precioso que o País precisa para se preparar para os tempos difíceis que aí vêm.

Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 23 de Março de 2011

terça-feira, 22 de março de 2011

Ao serviço do consumidor

John Kennedy no seu célebre discurso, em 1962, sobre os direitos dos consumidores considerou que a defesa efectiva desses direitos é do maior interesse nacional. Segundo ele, se o consumidor não é capaz de escolher ou se escolhe com base em informações falsas, desperdiça o seu dinheiro e pode pôr em causa a saúde e a segurança pessoal. A oferta de produtos de qualidade inferior e a preços exorbitantes não ajuda a economia, não faz crescer confiança entre as pessoas e não é estímulo para se fazer ou se manter o país competitivo.
A comemoração do dia Mundial do Consumidor, no dia 15 de Março, põe foco na importância de se respeitar os direitos básicos do consumidor designadamente o direito à segurança, o direito à escolha, o direito à informação, o direito a ser ouvido e o direito à formação para o consumo. A garantia desses direitos deve ser assegurada pelas autoridades através de legislação ajustada, de fiscalização efectiva e do incentivo a boas práticas.
Desta forma, cria-se um ambiente sócio-económico que valoriza a qualidade e em que os consumidores desenvolvem gostos e sensibilidades mais requintados. A sofisticação da procura tem efeito benéfico sobre a oferta: estimulando-a a encontrar formas mais inovadoras para responder às necessidades dos clientes e competir com empresas no sector tanto nacionais como estrangeiras.
As agências de regulação dos diferentes sectores da economia têm especial responsabilidade em fazer valer os direitos dos consumidores. Aliás, o objectivo central dessas agências em garantir a concorrência, em estimular a produtividade e em promover a inovação é precisamente a satisfação do consumidor. Ele quer produtos variados, com qualidade e a preço justo. Uma estreita colaboração dessas agências com as associações de defesa do consumidor mostra-se de maior importância e esforços devem ser feitos por ambas partes para a efectivar.
Em Cabo Verde, a luta pela defesa dos direitos dos consumidores deve juntar-se ao esforço nacional para o desenvolvimento de uma cultura de serviço. O futuro do país vai depender muito do nível que se atingir na prestação de serviços tanto no território nacional como para o estrangeiro. Para isso é fundamental que, a par de uma maior consciência dos direitos do consumidor, aumente a disponibilidade e a vontade das pessoas em prestar serviço com a alegria e satisfação de quem procura fazer um trabalho bem feito e sem complexos.
Já dizia Gandhi: "Um cliente é o mais importante visitante às nossas instalações. Ele não depende de nós. Nós dependemos dele. Ele não é interrupção no nosso trabalho. É a sua razão de ser. Nós não estamos a fazer-lhe um favor ao servi-lo. Ele faz-nos um favor concedendo-nos a oportunidade de o servir". Esse entendimento de Gandhi quanto à atitude certa face a um cliente tem a sua contraparte nas exigências que já no papel de consumidor se deve exibir sempre que se compra serviços de outrem. A consciência do reforço mútuo das duas atitudes faz da celebração do dia do consumidor também um dia de luta por melhor serviço e pela valorização de quem presta serviço.

Editorial do jornal "Expresso das Ilhas" de 16 de Março de 2011

domingo, 20 de março de 2011

Triunvirato na direcção do Estado

A intenção de levar para o Estado a cumplicidade política que sempre existiu entre o Presidente do PAICV e os seus dois vice-presidentes Manuel Inocêncio e Basílio Ramos coloca problemas sérios. O sistema político tem como fonte de legitimidade directa as eleições partidárias para a Assembleia Nacional e a eleição suprapartidária do presidente da república. Da configuração de forças no parlamento extrai-se uma solução de governo completando o trio de órgãos de poder político na área de soberania. A relação entre esses órgãos orienta-se obrigatoriamente pelo princípio constitucional de separação e interdependência dos poderes. Assim, a actividade legislativa do Governo e do parlamento é controlado via o exercício do poder de promulgação do presidente da república que pode vetar os diplomas apresentados. O governo e o parlamento são concorrentes na produção das leis mas à A.N. é reservada de forma absoluta competência para legislar sobre certas matérias. À oposição no parlamento é dado o poder de bloqueio com a exigência que matérias bem determinadas exigem maiorias qualificadas de dois terços dos deputados para serem aprovadas. Ao PR, ao PM ao Presidente da A.N. e a outras figuras do Estado como o Procurador Geral da República e ao Provedor de Justiça faculta-se a possibilidade de recorrer directamente ao Tribunal Constitucional a para fiscalização da constitucionalidade das normas. A par da actividade legislativa, o parlamento fiscaliza o Governo e a Administração Pública, podendo instaurar inquéritos basicamente sobre qualquer matéria . O PR por seu lado, exerce ainda o seu papel moderador do sistema no seguimento que dá às propostas do Governo de nomeação de personalidades para altos cargos do Estado. No funcionamento do sistema é de maior importância que haja lealdade institucional, mas não cumplicidade. Cumplicidades roubam os órgãos de soberania da sua autonomia e do poder de fazer “checks and balance” ao sistema. A cumplicidade de semanas atrás em que se viu a A N a esconder o veto do PR para depois vir dizer que não havia tempo para confirmar diplomas aprovados pela unanimidade dos deputados, deixou mal o presidente da república e o parlamento. As instituições falharam por razões de pura conveniência política. O plano do PAICV de transpor o triunvirato do partido para os três órgãos de soberania traz consigo o perigo de se ver repetidos episódios como o do veto presidencial. É o que acontece quando esbatem-se os contornos e os limites de actuação de cada um deles. A dinâmica do sistema pressupõe uma certa tensão que não deve desenvolver-se em crispação permanente nem, muito menos, quedar-se por um consenso cúmplice que rouba aos seus titulares o sentido de integridade, de dignidade e do bem servir ao país e à república. A ir-se por esse caminho restará somente a Oposição democrática para fazer o contrabalanço do sistema e manter o Estado longe das medidas discricionárias e arbitrárias que ameaçam a liberdade e a autonomia de indivíduos e colectividades públicas e privadas. Mas só a oposição não chega. Fundamental ter-se uma sociedade civil autónoma e participativa, uma imprensa livre e comprometida com as liberdades individuais e o constitucionalismo e um poder judicial independente e célere na administração da justiça. E, no ambiente assim criado, ver-se emergir todos os dias uma maior consciência individual e cívica dos cidadãos suportada no respeito pela dignidade pessoal e na valorização da honestidade e verdade.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Equívocos: VIII ou V Legislatura?

Na sequência das eleições legislativas de 11 de Março iniciou-se uma nova legislatura de cinco anos. A denominação oficial dada é de VIII legislatura. O ordinal VIII podia parecer ser inócuo, considerando que à partida se espera que resulta simplesmente do acto de contar 1ª., 2ª., 3ª., etc.,. O problema é se saber qual o ponto de partida. E aqui, como muito do que se passa, é-se vítima de conveniências politico-ideológicas. Em todas as democracias constitucionais faz sentido que a data inicial de contagem das legislaturas seja a partir da entrada em vigor da Constituição que marca o início da república. Na França, por exemplo, a I legislatura iniciou-se em 1958 com a adopção da Constituição que marcou o advento da V República. Em Portugal já se vai na XI legislatura a contar a partir da Constituição de 1976. Na Espanha o termo de referência é o ano de 1979 a data de entrada em vigor da nova constituição. Em Cabo Verde a única referência que parece aceitável é o 5 de Julho de 1975. Em consequência chamam de I legislatura aos primeiros cinco anos, período esse pré-constitucional porque anterior à Constituição de 1980 que criou a I república e estabeleceu os fundamentos do regime do partido único entre 1981-1990. A II república só iria surgir com a Constituição de 1992 depois de um período de transição marcada pela revisão constitucional de Setembro/Outubro que pôs fim ao partido único e o 13 de Janeiro de 1991 que efectivamente iniciou o regime multipartidário. Seguindo a tradição democrática e constitucional, Cabo Verde só poderia estar a iniciar a V Legislatura, contando a partir da inauguração da II República. A dificuldade em se aceitar o que é claro e cristalino revela o peso da canga ideológica e política do Paicv que ainda se abate sobre as mentes e as instituições caboverdianas. Não deixam que referências derivadas da ordem constitucional vigente se sobreponham às referências da história do partido. O resultado é ficar-se com a VIII quando realmente se está na V. E assim vai o país.

terça-feira, 15 de março de 2011

Presidenciais: Partido impõe-se

No sábado, dia 12 de Março, o Paicv escolheu o Eng. Manuel Inocêncio como seu candidato presidencial. Foi surpresa geral. Vários factores apontavam para o Dr. Aristides Lima como sendo o favorito. Estava à frente nas sondagens, facto comprovado pelos dados da Afrosondagem publicados um dia antes da reunião do Conselho Nacional em vários órgãos de comunicação social. Beneficiava de grande notoriedade nacional em virtude do exercício durante dez anos do cargo de Presidente da Assembleia Nacional e ter lançado a candidatura há dois anos atrás, em Fevereiro de 2009. Pelo contrário o Eng Inocêncio foi o último dos três candidatos do PAICV apresentar-se e as suas movimentações só se iniciaram em Fevereiro de 2010. Em relação à viabilidade da sua candidatura houve sempre cepticismo. Dava-se como facto que “originários de S. Vicente nunca seriam eleitos presidente da república”. A carta do regionalismo tem sido usada nas lutas por lugares nos órgãos dos dois grandes partidos para bloquear ascensão de uns e dissuadir outros das suas pretensões ao mesmo tempo que se faz avançar uns tantos com credenciais julgadas certas. Pela decisão de sábado vê-se que a lógica regionalista apesar de bem presente não prevaleceu sobre a do partido. A lógica também perversa de partidarização do Estado impôs-se e a vontade da cúpula do partido em ocupar os pontos cimeiros ganhou. Para o cargo de presidente da república optava-se pelo vice-presidente do Paicv, Eng. Manuel Inocêncio. No dia anterior, o outro vice presidente, o Dr. Basílio Ramos, tinha sido eleito presidente do parlamento. Com o Dr José Maria Neves já no cargo de primeiro ministro o triunvirato na direcção do PAICV de 2000 transporta-se completamente para o Estado e assegura posições chaves nos órgãos de soberania. Não podia haver maior exemplo de partidarização das eleições presidenciais. Mas na linha do que o PAICV já habituou os caboverdianos, o dr José Maria Neves, dois dias antes dizia: Não podemos partidarizar a questão presidencial. Temos de despartidarizar. Gostaria de contar com o apoio forte da imprensa, para fazermos pedagogia política relativamente a esta matéria”. Questionado pelos media se estaria a criticar o Dr. Aristides Lima, declarou de seguida: “Não crítico absolutamente ninguém. Falo em abstrato de ideias, valores e princípios sobre o futuro”. Viu-se como é. O aparentemente favorito ficou para atrás perdendo para ala partidária que está com o vencedor das eleições legislativas. A pressa do MpD em descartar a possibilidade de uma candidatura do Dr. Carlos Veiga e em indicar candidato presidencial facultou ao PAICV toda a informação necessária para sua tomada de decisões. No contexto assim clarificado, todos os candidatos se viram viáveis e a lógica do presidente do partido sobrepôs-se a todas outras.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Centenário do Dia das Mulheres

Comemorou-se, no passado 8 de Março, o Dia Internacional das Mulheres. Neste ano de 2011, a celebração desse dia tem um sabor especial. Completam-se cem anos que em Viena de Áustria se instituiu este dia para relembrar a todos a necessidade de continuar a luta pelos direitos plenos das mulheres. Em 1977 a Assembleia Geral das Nações Unidas consagrou a data e hoje é festejada em todos os países.

O dia 8 de Março celebra as realizações e sucessos das mulheres nos domínios político, económico e social no passado, no presente e no futuro. Em 1911 as reivindicações das mulheres eram o direito ao voto, o direito a ter formação e não ser discriminadas. Cem anos se passaram e os ganhos das mulheres têm sido extraordinários.

Ao nível político, o direito ao voto é quase universalmente reconhecido e cada vez mais mulheres ocupam cargos de Chefes de Estado, Chefes de governo, ministros e parlamentares. Ao nível económico verificaram-se grandes avanços com o acesso generalizado ao ensino. Abriram-se-lhes as portas nos diferentes sectores da economia e posições cimeiras nas maiores empresas do mundo já são ocupadas por mulheres. Ao nível social e da família a percepção cada vez mais generalizada que o homem e a mulher gozam dos mesmos direitos tem revolucionado o papel entre os sexos e permitido que as mulheres conciliem de forma mais gratificante a vida familiar com a carreira. A disponibilidade de anticonceptivos efectivos deu às mulheres um maior controlo sobre a sua vida sexual e tornou a maternidade um acto de vontade própria e por isso de maior alegria e realização pessoal.

Infelizmente os ganhos das mulheres não são universalmente uniformes. Em muitos países as mulheres são discriminadas, humilhadas e violadas nos seus direitos e na sua integridade física. Na praça de Tahrir, na cidade do Cairo, viu-se a presença forte das mulheres na luta pela liberdade. E foi encorajador e certamente que inspirou em muitas outras mulheres por todo o mundo a enfrentar as forças que ainda as aprisionam e as ofendem na sua dignidade. A violação de uma jornalista da televisão americana CBS nessa mesma praça mostra que a possibilidade de abuso e de regresso a formas de humilhação existe e há que manter uma vigilância e uma pressão permanente para controlar comportamentos desviantes.

Neste dia 8 de Março a nossa solidariedade deve ser dirigida para todas as mulheres que ainda sofrem por razões do seu género, em particular para as que nas zonas de guerra são vítimas de violações brutais, e para as que em todos os continentes são reduzidas à escravidão e lançadas na prostituição.

Em Cabo Verde avanços extraordinários foram já feitos na defesa dos direitos das mulheres e na criação das condições para a uma vida plena a todos os níveis. O advento da democracia traduziu-se num salto qualitativo na participação das mulheres designadamente ao nível político e empresarial. As potencialidades de milhares de jovens meninas e mulheres foram desenvolvidas com generalização do ensino secundário para todos os pontos do país e o acesso cada vez maior ao ensino universitário. O país em todos os domínios já sente a contribuição substancialmente significativa propiciada pelas mulheres que no governo, no parlamento, na magistratura, nas empresas, nas escolas, nos hospitais nas fábricas, nos serviços se destacam pela sua capacidade de trabalho, inteligência e sensibilidade.

Muito ainda por fazer para soltar todo o potencial existente nas cabo-verdianas que o seu quotidiano de pobreza, de falta de oportunidades e de pressão familiar não deixa florescer. Como todas as mulheres do mundo, a luta da mulher cabo-verdiana por uma vida plena, digna e gratificante a todos os níveis deve continuar.

Editorial do Jornal "Expresso das Ilhas" de 8 de Março de 2011

sábado, 12 de março de 2011

Paroquialismos

Os dados da Afrosondagem vindos a público na sexta feira, dia 4 de Março, chamam a atenção para um aspecto e preocupante. O carácter marcadamente local das intenções de voto nos candidatos presidenciais. Atingem valores elevados de preferência nas ilhas ou regiões de origem. O facto seria normal ou inevitável se de eleições autárquicas e mesmo legislativas se tratasse. Mas são eleições para o cargo de “presidente de todos os caboverdianos”. Há que perguntar o que poderá estar a alimentar perspectivas tão estreitas dos cidadãos. A questão da origem de candidatos a posições cimeiras do Estado tem vindo paulatinamente a público. Primeiro de forma velada e cada vez de forma mais directa. Os partidos têm resistido mais ou menos a isso na composição dos seus órgãos. Mas a pressão existe e não é ignorada. Por alguns é utilizada para dissuadir colegas de perseguir certas posições. Para outros é uma forma de forçar avanços na carreira porque se dizem representativos da “ilha maior”. O Engenheiro Manuel Inocêncio, segundo ele próprio, foi confrontado com questões acerca da viabilidade da sua candidatura por ser originário de S.Vicente. Agora parece que as sondagens vêm confirmar as preferências fortemente regionais. O Dr. David Hoffer Almada tem a preferência de Santiago Norte, o Eng. Inocêncio é forte em S.Vicente e o Dr Aristides Lima na Boavista e no Fogo. Estas tendências contrariam o que foi normal noutras eleições presidenciais, a começar pela primeira eleição em 1991 em que a questão da origem do candidato nunca se colocou. Como aliás nunca se põe nas democracias com consciência profunda da nação. Em Cabo Verde também não devia ser um problema. Muito antes da independência, já existia a ideia do caboverdiano e da caboverdianade, não obstante as especificidades reconhecidas das ilhas. Não havia à partida razões para tensões entre as ilhas. Muito menos que disputas procurassem expressão política no acesso privilegiado a lugares cimeiros do Estado. O desagregar de uma certa noção da unidade da nação poderá ser efeito do esforço de centralização em curso no país. Centralização provoca desigualdade entre as ilhas tanto na repartição de recursos como na criação de oportunidades. Em consequência, desertifica em termos humanos umas ilhas em favor de outras. Provoca sentimentos de abandono que são aproveitados em discursos populistas que reforçam a perspectiva local e perpetuam a frustração. Em contrapartida, onde o Poder reside a arrogância cresce e faz-se ouvir. O resultado é o enfraquecimento da ideia da nação com o aparecimento de tendências hegemónicas e a perda da diversidade que sempre caracterizou a caboverdianidade seja na índole das suas gentes seja ainda, na língua, na música e nos costumes.

sexta-feira, 11 de março de 2011

Precipitação?

Para qualquer observador, parece apressada a tomada de posição da direcção nacional do MpD em relação às eleições presidências. Pela via da revisão constitucional de Fevereiro de 2000 optou-se por separar as duas eleições legislativas e presidenciais por um período de seis meses. O objectivo era evitar o contágio de uma eleição pela outra e assim acabar com a quase inevitabilidade do Governo e do presidente da república virem sempre do mesmo quadrante político. As necessidades de equilíbrio, arbitragem e moderação no sistema político podiam ser melhor satisfeitas retirando esse quase determinismo nos resultados eleitorais. Os partidos, face aos resultados eleitorais das legislativas, teriam tempo para melhor decidir quanto às presidenciais que viriam depois. Naturalmente que para o partido vencedor o ideal é manter viva a euforia da vitória para, meses depois de governação, conseguir galvanizar os eleitores e eleger um presidente da sua escolha. Por isso apressa-se a escolher o seu candidato com um mínimo de atrito interno e rapidamente reúne o partido a sua volta para limitar perdas no suporte de militantes e eleitorado. Uma outra abordagem tem os partidos vencidos. Não estão no governo, interessa-lhes um maior equilíbrio do sistema político e sabem que o tempo pode jogar a seu favor. Nos meses que se seguem pode-se verificar o desencanto de certos eleitores devido ou a promessas que tardam em ser cumpridas ou a sinais de excessos do novo governo que indiciam que lhe faria muito bem ter um travão na presidência da república. Na expectativa de lidar com um cenário político diferente do que tiveram nas legislativas os partidos na oposição analisam as razões da derrota e procuram de entre as individualidades disponíveis o candidato que melhor perfil tem para prevalecer sobre outros candidatos na nova conjuntura política. E aí não tem razões para pressas desnecessárias. Por isso, que a decisão da DN em analisar a questão presidencial surpreende primeiro, porque não estava inicialmente agendada e depois porque dificilmente se descortina razões para antecipar ao PAICV numa matéria dessa natureza. A publicação das sondagens da Afrosondagem mostrando candidatos do mesmo quadrante político do MpD em clara desvantagem em relação aos do PAICV devia ser motivo para um compasso de espera. E outros estudos de opinião poderiam, entretanto, ser feitos com vista a uma decisão final mais abalizada, menos apaixonada e mais consensual.

quinta-feira, 10 de março de 2011

Pulsão para denegrir o Poder Local

As eleições municipais ainda estão a mais de um ano e meio de distância mas o governo e o PAICV já se movem para intensificar a guerrilha contra as câmaras administradas pelos partidos da oposição. O Ministério de Descentralização serve-se de inspecções discricionárias similares à feita a S.Vicente em resposta a denúncias do Paicv para lançar descrédito nos órgãos municipais. A interpretação da tutela da legalidade pelo governo tende a descambar para intervencionismo que fere o princípio de autonomia e desrespeita a vontade popular expressa no voto dos munícipes. O carácter partidário de muitas dessas intervenções revela-se no facto de serem seguidas por notícias na imprensa e por posicionamentos da bancada do PAICV já a acusar de desvios com base em dados dos relatórios dos inspectores que só eles têm acesso. O programa “Casa para todos”, o foco de muita propaganda eleitoral, tem sido instrumental nessa ofensiva. A ofensiva começara antes das eleições, procurando atirar culpas sobre as câmaras pela falta de emprego, pela quebra na dinâmica económica e pelas deficiências em serviços públicos como água e energia. No pós-eleições persiste-se na mesma linha e, ainda sem a sociedade ter gozado do merecido relaxe e descanso da polarização política excessiva, procura-se já aumentar a crispação. Renova-se com especial intensidade o denegrir do Poder local. Vão nesse sentido certas intervenções de governantes, as denúncias de corrupção dos chefes locais, a sintonia com os media que propagandeiam essas acusações e as tentativas de manipulação de instituições públicas ligadas à investigação criminal. Tudo isso acontece porque os municípios são espaços de exercício plural do poder político. Para quem quer erigir-se em Poder sem limites os municípios com as suas competências e recursos próprios são adversários a neutralizar. Pela via legislativa consegue-se a erosão de algumas competências. Pela promoção directa de associações comunitárias e outras criam-se poderes paralelos, não eleitos mas com recursos e que não se responsabilizam perante o Tribunal de Contas e os munícipes. Pela via de acusações de corrupção e de gestão danosa desprestigiam-se os órgãos municipais perante a população. Tais manobras também servem para justificar a gestão directa pelo Estado das doações da comunidade internacional normalmente parceiras dos municípios e para o encaminhamento subsequente dos fundos para associações de escolha do governo. Como dizia Hillary Clinton num discurso em Julho do ano passado na Cracóvia, Polónia, há democracias em que os governantes não se vêem subservientes ao seu povo mas querem fazer o povo subserviente a eles. E que para isso esforçam-se por criar a sua sociedade civil, uma colecção de ONGs, associações comunitárias, organizações juvenis, etc dependentes em recursos e instrumentos de uma agenda maior de controlo social. Nota-se o artificialismo desse associativismo estatal quando por outras vias se avalia o capital social existente, o grau de civismo e a confiança dos cidadãos na relação com os seus pares. O nível é muito baixo como mostram os dados de Cabo Verde recolhidos pelo Afrobarómetro. A pressão governamental para tudo controlar corrói o tecido social dando origem a fenómenos já reconhecidos de medo, intriga social, de falta de carácter e de dignidade, de corrupção, de extorsão política e de venda de votos. São fenómenos que não se pode ignorar.

terça-feira, 8 de março de 2011

Cumplicidades, dez anos atrás

As várias cumplicidades à volta do veto presidencial, designadamente a não publicidade do veto, a não fundamentação do mesmo, a sonegação de informação, as ausências para não decidir e, finalmente, as desculpas esfarrapadas para não deliberar fazem lembrar acontecimentos de há dez anos atrás. Também estava-se perto do fim da legislatura e o PAICV tinha saído vencedor nas eleições legislativas. No dia 1 de Fevereiro de 2001, a meio da campanha eleitoral presidencial, o então presidente Dr. Mascarenhas Monteiro resolveu empossar um governo do PAICV. A legislatura não tinha terminado. Só viria terminar no dia 13 de Fevereiro com a sessão constitutiva da nova Assembleia Nacional. O País viveu um caso inédito de ter um governo que não correspondia à configuração de forças políticas no parlamento. De facto o MpD ainda detinha maioria absoluta e um governo que não fosse por ele formado não sobreviveria à moção de confiança necessária para ser um governo pleno e não de gestão. O então PR resolveu o problema jogando com os prazos. Empossou o governo do PAICV 13 dias antes do fim de legislatura mas ainda com uma folga de mais dois dias para completar os 15 dias do prazo de apresentação do seu programa do governo. De modo que quando o Paicv veio solicitar confiança para o seu programa já encontrou um parlamento cuja configuração de forças políticas lhe era favorável. O facto é que o então PR contornou o estipulado na constituição para a transferência de poderes na sequência das eleições legislativas. A Constituição é clara: Vinte dias depois de publicados os resultados eleitorais no Boletim oficial, inaugura-se uma nova legislatura na sessão constitutiva da nova assembleia nacional. O governo até ao momento em pleno uso das suas competências, demite-se automaticamente e passa a governo de gestão. Condição essa que irá manter até ser exonerado pelo presidente da república no mesmo momento em que é empossado o novo governo. Este, por sua vez, entra em gestão e só inicia efectivamente o mandato com a apresentação do programa ao parlamento e aprovação da moção de confiança. Em Fevereiro de 2001 a conveniência reinou. O então PR, em entrevista posterior, desculpou-se dizendo que o ex-primeiro- ministro, Dr. Gualberto do Rosário, pedira demissão e ele “não mandou arquivar”. Assim, mesmo sabendo que o Governo do MpD ficaria demitido automaticamente no dia 13 de Fevereiro com a nova legislatura, optou por exonerar o Dr. Gualberto do Rosário e empossar o Dr. José Maria Neves como Primeiro-ministro. Precisamente a meio de eleições presidenciais que viriam a ser declaradas ganhas pelo candidato apoiado pelo PAICV, por apenas 12 votos. Claro que é absolutamente legítimo perguntar-se até que ponto a posse do Governo antes de tempo e a meio da campanha influenciou os resultados das presidenciais. Particularmente quando se sabe como o Governo do PAICV moveu-se logo a seguir a sua posse. Fulgurantemente moveu-se para controlar a polícia, o processo eleitoral e a rádio e televisão. Os pontos nevrálgicos que todos que querem o poder ou querem projectar uma imagem de força ocupam para tornar bem visível o domínio que têm sob as coisas, as pessoas e os processos. Sabe-se o que aconteceu depois.

sexta-feira, 4 de março de 2011

Transparência nos assuntos do Estado

No Estado de Direito democrático exige-se publicidade dos actos dos órgãos de soberania. Assim é porque transparência na esfera pública é fundamental para se salvaguardar direitos fundamentais dos cidadãos, para se certificar que o Estado age de acordo com a lei e para se fiscalizar e responsabilizar os governantes. No mesmo sentido vai a consagração do princípio de separação e interdependência de poderes dos órgãos de soberania para se evitar concentração e abusos de Poder.

O veto do Sr. Presidente da República ao Estatuto dos Magistrados Judiciais e ao Estatuto dos Magistrados do Ministério Público não foi objecto de anúncio público por iniciativa da presidência da república. A Assembleia Nacional, o destinatário da mensagem do presidente da república falhou, por mais de duas semanas, em dar conhecimento aos deputados e ao público em geral da devolução dos diplomas vetados. Depois de se conhecer a mensagem do Presidente da República o país ainda está por saber quais os fundamentos do veto político.

A reforma da Justiça, por todos aplaudida, comportava um pacote de cinco leis a saber: A lei de Organização e funcionamento dos tribunais judiciários, a lei orgânica do Ministério público, a Lei de organização e funcionamento do Conselho Superior da Magistratura e os Estatutos dos Magistrados Judiciais e do Ministério Público. Para se conseguir acordo sobre a reforma de justiça os partidos políticos levaram dois anos em negociações árduas. De permeio fez-se uma revisão constitucional para clarear obstáculos significativos no caminho da instituição de um sistema judicial livre de interferência política e com juízes seleccionados na base do mérito e com recurso a concurso público.

Vetos do presidente da república são instrumentos necessários de equilíbrio e moderação do sistema político. Perante leis por promulgar o PR pode recorrer à fiscalização preventiva de constitucionalidade se tem dúvidas em relação à constitucionalidade das normas aprovadas. Noutras situações o PR pode vetar na base do que os entendidos chamam de “não conformação política” dos diplomas. Em todos os casos o veto é fundamentado para que o órgão legislativo, a Assembleia Nacional ou o Governo, ajam para confirmar ou fazer as alterações necessárias.

O insólito no caso presente é, primeiro, a falta de publicidade de um acto tão importante como é veto político do Presidente da República. Segundo, é o Presidente da Assembleia Nacional e a maioria parlamentar a bloquear uma Reunião Plenária para os deputados deliberarem sobre os diplomas que tinham aprovado por unanimidade. Não pega a desculpa de que a realização das eleições legislativas de alguma forma diminuiu o actual parlamento. Assim como o governo só entra em gestão no dia 11 de Março com o fim da legislatura também o parlamento tem poderes plenos até essa data. Noutros países os parlamentos legislam normalmente durante todo o tempo até à transferência de Poder e o início de um novo mandato.

Os actos rocambolescos à volta deste caso deixam transparecer interesses não explícitos e jogos nos bastidores. Actos que se tornam particularmente graves quando parecem mexer com os órgãos de soberania de um modo pouco consentâneo com o interesse público. Isso é inaceitável. A integridade e a dignidade das instituições da República devem ser preservadas a todo o momento.

Editorial do Jornal Expresso das Ilhas de 2 de Março de 2011

quinta-feira, 3 de março de 2011

Protagonismo externo deslocado

No domingo dia 20 de fevereiro o presidente Pedro Pires encontrou-se mais uma vez com o presidente da Guiné equatorial Nguema Mbasongo na ilha do Sal. O encontro, acompanhado de perto pela comunicação social estatal, mostrou o PR a protagonizar mais uma investida diplomática junto a esse país africano internacionalmente tratado como um pária. Nas palavras do PR a insistência nas relações com a Guiné Equatorial justifica-se com as potencialidades desse país e do que pode oferecer aos caboverdianos em termos de emprego, de investimento e de oportunidades de negócio. Uma linha similar de raciocínio foi seguida na aproximação feita à Líbia de Khadaffi que o levou varias vezes a Tripoli nos últimos dois anos. Os resultados não se viram e dificilmente os acordos eventualmente feitos irão concretizar-se agora que o regime autocrático vê-se ameaçado pela sublevação popular. Khadaffi está por um fio. O Nguema Mbasongo já está a tomar medidas severas de calar a imprensa nacional para não sofrer contágio do que se passa nos países do Maghreb e no Médio Oriente. Tem razões para se preocupar. O nível de corrupção e os abusos dos direitos humanos na Guiné Equatorial têm merecido repúdio geral. No ano passado a Unesco recusou-se a instituir um prémio internacional com o nome do presidente. E a CPLP não respondeu positivamente ao pedido de integração na comunidade linguística apesar da posição favorável de Cabo Verde expressa por Pedro Pires. Por tudo isso causa estranheza a visibilidade dada ao encontro do Sal dos dois presidentes na actual conjuntura de “caça” aberta a déspotas por todo mundo. Não parece que seja uma boa imagem para Cabo Verde. A condução da política externa pertence exclusivamente ao governo mas por razões não muito claras o Presidente da República envereda-se por um certo de protagonismo que aparentemente não se ajustam ao papel de simples representação externa da república que a Constituição lhe atribui. E os ganhos para o país não são visíveis como testemunham os casos citados. O envolvimento do PR na mediação do conflito da Costa de Marfim não beneficiou ninguém. Nem tão pouco faz algum favor ao país passar-se a ideia de que Cabo Verde esforça-se por associar-se a regimes como os da Líbia, da Venezuela, da Guiné Equatorial e de outros regimes autocráticos africanos. Actos do governo na condução da política interna e externa são sujeitos aos mecanismos de fiscalização política do parlamento nos termos da constituição. Se o governo se deixa ser secundarizado em certas iniciativas externas, é de se perguntar quais os motivos para isso e quem deve prestar contas dos fiascos já verificados. Solidariedades antigas construídas essencialmente para justificar mutuamente a imposição de regimes autocráticos aos respectivos povos não devem ser repetidas na nova era da democracia. Insistir nelas simplesmente sinaliza que os apetites de total controlo ainda continuam. Pior ainda, pode-se ficar a um passo de ver essas "solidariedades" transformadas em interferências externas particularmente no processo eleitoral para ajudar na vitória de governos "amigos". E isso é inadmissível. Por tudo isso accountability completa também é necessária nas relações externas.

quarta-feira, 2 de março de 2011

Desculpas do Sr. Presidente da AN

Finalmente, ontem, dia 1 de Março, foi possível reunir a Conferência de Representantes. Para isso foi necessário “forçar a barra” com um requerimento assinado por quinze deputados do MpD. Foi um reunião de desculpas de mau pagador e de mais uma exibição de cinismo e hipocrisia. O Presidente da AN explicou à Inforpress que “é muito difícil em termos práticos” a realização dessa sessão. O líder parlamentar do PAICV, por sua vez, diz que “se constatou que há muito pouco tempo para se realizar uma sessão antes da posse dos novos deputados”. Compreende-se assim todo o esforço feito na AN para esconder o veto presidencial dos sujeitos parlamentares e do público. Queria-se chegar ao ponto actual e fingir sinceridade ao dizer: não há tempo para reunir os deputados. A realidade é que se pretende que os deputados se calem perante o veto do presidente da República. Mas, em vez de levar os deputados a “conformarem-se tacitamente” com o veto, optou-se por vias escusas de sonegação de informação aos sujeitos parlamentares e de deliberada procrastinação de procedimentos regimentais que deviam seguir-se à mensagem do PR. Simplesmente para depois chegar à conclusão que é tarde demais nesta legislatura para agir. O presidente da AN ao justificar-se por não ter convocado uma reunião plenária 15 dias depois do veto, como manda o nº1 do artigo 174º do Regimento, afirmou que o diploma “já não é um proposta de lei ou um projecto de lei” e por isso não se põe o problema de caducidade. Em Portugal chama-se decreto ao diploma aprovado pelo parlamento mas ainda não promulgado. Mas, em Cabo Verde, não há uma designação especial e a referência que se encontra no Regimento é de iniciativa legislativa (artigo 175º n.3). E o Regimento é claro que as iniciativas legislativas caducam com o termo da legislatura. É essa também a posição dos constitucionalistas portugueses Gomes Canotilho e Vital Moreira quanto ao destino dos decretos vetados: “O veto não é definitivo, pois o PR pode vir a promulgar o diploma, se a AR proceder à sua confirmação. A Constituição não fixa prazos para a deliberação da AR pelo que se deve entender que o processo só caduca com o termo da legislatura ou dissolução da AR (Constituição Anotada (pg. 599. 3ª edição)”. Em conclusão, pode-se dizer que a democracia e o Estado de direito para funcionarem realmente precisam que as suas instituições tenham carácter e dignidade. Instituições que cumprem em pleno as suas competências e que não confundam lealdade institucional com cumplicidades na salvaguarda de orgulhos deslocados.

terça-feira, 1 de março de 2011

A Língua e o futuro

A Unesco escolheu o dia 21 de Fevereiro como o Dia da Língua Materna, por decisão datada de 17 de Novembro de 1999. Curiosamente, nesses mesmos dias verificava-se em Cabo Verde a primeira revisão ordinária da Constituição da República. Uma das novidades foi a introdução no artigo 9º, sob a epígrafe “línguas oficiais”, de um número 2 com o seguinte texto: 2. “O Estado promove as condições para a oficialização da língua materna cabo-verdiana, em paridade com a língua portuguesa”. Estava dado o passo decisivo para o reconhecimento da língua materna caboverdiana e o comando para a criação das condições para uma posterior oficialização.
Cabo Verde é uma nação cultural e linguisticamente homogénea. A sua língua materna tem séculos de existência e nunca foi seriamente ameaçada por nenhuma outra língua. Nem mesmo pela língua que sempre foi oficial no arquipélago que é a língua portuguesa. A sua resiliência consta-se nas gerações de caboverdianos, em todos os continentes e em todas épocas, que a preservam e a acarinham e a passam às novas gerações.
Diferentemente do que acontece em muitas outras sociedades crioulas, o uso do crioulo não identifica estratos sociais nem é repudiado pelas elites ou por quem aspira ser parte da elite. Os titulares dos órgãos de soberania sentem-se livres de se exprimirem em crioulo a qualquer momento, os cidadãos tratam com a administração pública sem quaisquer impedimentos também em crioulo. O mesmo acontece com os depoimentos nos tribunais judiciais. A língua não é discriminada nem se discrimina quem dela faz uso no seu quotidiano e nas relações oficiais.
O crioulo é uma língua essencialmente oral. Cada ilha possui o seu variante. E goza dum campo extraordinário de expressão nas diferentes modalidades musicais caboverdianas como a morna, a coladeira, o funaná e o batuque. Os artistas caboverdianos levam a todos os pontos do planeta a sonoridade e a poesia que é capaz de exprimir. Todos os caboverdianos se identificam com a sua língua e não precisam fazer alarde dela para aumentar a sua auto-estima.
Controvérsias têm surgido à volta da problemática de padronização do crioulo escrito. E é natural que assim seja.
Processos similares noutros países duraram séculos e sempre rodeados de polémicas. No Luxemburgo, o processo levou décadas e ainda o nível de utilização da língua escrita é bastante baixo. Cabo Verde deve fazer o seu caminho com tranquilidade. Receios de hegemonia, de umas variantes sobre outras, devem ser respeitados e serenamente deve-se caminhar para uma padronização e um alfabeto que potenciem a língua ao mesmo tempo que preservam as suas raízes.
Importa manter um ambiente de concórdia em relação à língua e às condições a serem criadas até a sua oficialização futura, para que atenção da Nação se focalize no que é estratégico para o país em termos de competência linguística utilitária. Cabo Verde só poderá combater o desemprego e dar rendimentos e qualidade de vida crescente aos seus filhos se tiver sucesso na construção de uma economia de prestação de serviços dirigidos tanto para o mercado interno como para o externo. Isso exige conhecimento adequado de línguas estrangeiras.
O conhecimento do português é fundamental, não só porque é a língua oficial como também porque é a língua de alguns dos principais mercados tradicionais do país, totalizando quase duas centenas de milhões de pessoas.
Uma outra prioridade nacional deve ser o inglês, por razões óbvias. Neste dia de comemoração da língua materna, é de se regozijar com a relação tranquila que se mantém com ela e mobilizar os esforços para capacitar todos os caboverdianos com o domínio das línguas que os tempos e o sucesso na economia global exigem. Para que a Nação viva sempre e vença.

Editorial do jornal Expresso das Ilhas de 23 de Fevereiro de 2011