"A sociedade caboverdiana está descaracterizada", palavras de Dom Arlindo Furtado depois de um encontro com o Presidente da Câmara para discutir a problemática da segurança na Praia. A constatação do Bispo de Santiago vai ao encontro da percepção de muitos de que o tecido social do país mostra sinais graves de enfraquecimento e ameaça rasgar-se. Problemas mostram-se na falta de civismo, na fragmentação familiar e na violência crescente contra pessoas.
O sentimento de falta de amparo por parte da sociedade atinge particularmente os jovens. Alguns reagem saindo à cata de algum refúgio e julgam encontrá-lo na droga e nos "gangs" denominados thugs. Na busca de substâncias ilegais e na utilização da violência como forma de afirmação e identidade no espaço urbano, acabam por contribuir para o aumento da agressividade geral. Com isso alienam ainda mais a sociedade envolvendo a todos numa espiral de violência que cria mais insegurança, aprofunda o desnorte e revela impotência geral. Agrava-se a situação sempre que as autoridades e a sociedade deixam-se cair na tentação
de resolver os graves problemas sociais com acções excessivas das forças de segurança.
Várias razões estarão na origem da fragmentação social que se verifica actualmente. Mas, facto é, valores só se revigoram e se renovam num ambiente socioeconómico e cultural propício. Por exemplo, valores de dignidade, liberdade e autonomia dificilmente se afirmam, quando se toma como prioridade máxima a atracção e gestão da ajuda externa em detrimento da construção de estruturas produtivas no país. No ambiente criado de assistencialismo, tais valores vêem-se substituídos por subserviência, conveniência e oportunismo. No processo, a iniciativa individual também fica distorcida. Em vez do empreendedorismo capaz de congregar capacidades para atingir objectivos socialmente úteis, favorece-se quem sobe na carreira subtraindo outros ao longo do caminho via intrigas, relações especiais com poderes instalados e pertença a redes de influência.
A prática dos poderes públicos na distribuição da ajuda externa favorece, em primeiro lugar, quem é próximo e leal. Naturalmente que isso gera a marginalização do outro, crescente desigualdade social, discrepâncias profundas entre regiões do país e centraliza-ção nas decisões do país. As consequências ao nível individual e familiar são profundas. Os que se sentem abandonados, ou sem as oportunidades dadas a outros, podem descambar numa postura associal e procurar conforto em causas e organizações muitas vezes marginais.
A luta contra a pobreza, supostamente, deveria constituir um esforço de contenção desse resvalar para a miséria e a indigência de quem tem muito pouco a perder e que não acredita em nada. A actividade das ONGs e das associações comunitárias, ao propiciar espaços dignos de participação e oportunidades na construção autónoma da vida das pessoas, deveria ser um bálsamo para as chagas no tecido social. O desânimo não tomaria conta das pessoas e a esperança numa vida melhor poderia reacender-se com políticas públicas e encorajamento da actividade económica privada nacional e estrangeira propiciadoras de emprego.
O sequestro pelos poderes públicos da agenda de muitas das associações e ONGs no intuito de servir propósitos partidários e controlar cidadãos vulneráveis, escamoteia a missão nobre para a qual foram criadas.
Em vez de ajudarem a restaurar a dignidade e autonomia das pessoas, colocam-se no papel de instrumentos indutores da dependência e do espírito assistencialista. Como têm uma actuação abrangente, não há ponto do território nacional que escape ao efeito erosivo dos valores provocado por tais práticas.
Restaurar valores, ter instituições com sentido de serviço público e orientar o país para oferecer um emprego digno e gratificante a todos os caboverdianos é o caminho que deve ser trilhado para um futuro de paz, de segurança, de solidariedade e de prosperidade.
Editorial do Jornal “Expresso das Ilhas” de 1 de Fevereiro de 2012
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